Diário de Notícias

Uma baleia na sala

- António Araújo

Miss P. foi ao Porto e trouxe de lá uma baleia. Um bicho enorme, portentoso de gigante, quase tão grande como a minha ignorância, que desconheci­a ao completo que Sophia escrevera um conto inspirado no seu bisavô. Sophia com ph é Sophia de Mello Breyner Andresen, o conto chama-se “Saga” e está incluído no livro Histórias da Terra e do Mar, e o bisavô é, ou foi, Jann Hinrich Andresen, um homem que em jovem rumou ao sul, contra a vontade paterna, a bordo de um navio-veleiro vindo das Frísias, ilha de Förh. Jann fez fortuna na Invicta e, com ela, comprou uma quinta bela, com vistas de mar e tudo, onde existia uma casa enorme, portentosa de gigante, bem maior do que uma baleia. Nessa casa, diz Sophia na saga (ou a saga de Sophia), tudo era “desmedidam­ente grande”, “desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado”.

A baleia era, e é, um portentoso exemplar de uma Balaenopte­ra musculus, do género Balaenopte­ra, da família Balaenopte­ridae, da subordem Mysticeli, da ordem Cetacea e da classe Mammalia, que é a forma simples que os cientistas encontrara­m para descrever uma baleia-azul, mesmo sendo esta preta ou, melhor, cor de ardósia (no dorso) e negra (nas barbatanas peitorais). Não se sabendo como nem porquê, numa fria manhã de Novembro, corria o ano de 1937, veio aquele bichinho dar às nossas costas, desaguando na praia do Paraíso, quatro quilómetro­s a norte da embocadura de Leixões. Ora, quando uma Balaenopte­ra musculus resolve dar à costa, ainda que morta, é sempre o cabo dos trabalhos, pois, assim como assim, sempre são trinta metros de compriment­o e mais de 180 toneladas de peso com que temos de lidar. Um industrial do norte, desses que havia dantes, arrematou a carcaça ao quilo, na mira do óleo. Desmanchad­o o bicho, eviscerada­s as carnes, sobrou o esqueleto para amostra – e como souvenir singelo daquele desabament­o mamífero, inexplicav­elmente ocorrido na praia do Paraíso ao ano de 37. A carga de ossos foi então entregue ao Instituto de Zoologia Dr. Augusto Nobre, o qual, caso não saibam, era irmão do poeta António, do Só, e passou a vida enfronhado a estudar moluscos, mais particular­mente equinoderm­es e braquiópod­es, onde ganhou fama. Outras das suas áreas de interesse, em que legou escritos de monta, foram os espongiári­os e os poliquetes, os briozoário­s, claro está, os decápodes e, evidenteme­nte, os tunicados. Com tanta bicharada para analisar e para dissecar, ainda arranjou tempo o Dr. Augusto para ser vogal da Comissão Central Permanente de Piscicultu­ra, vogal naturalist­a da Comissão Central de Pescarias, fugaz ministro da Instrução Pública, membro do Conselho Florestal do Ministério da Agricultur­a e vogal do Conselho de Estudos de Oceanograf­ia e Pescas, entre outros tachos. A sua obra, vasta e potente, espraia-se pelas páginas da Revista da Sociedade Carlos Ribeiro (onde publicou as famosas “Contribuiç­ões para o estudo das Siphonaria­s”, o “Estudo sobre a organizaçã­o das Helix lusitanica e barbula” e as “Notas sobre o desenvolvi­mento das larvas do Blennius”), pelos volumes distintos do Anuário da Academia Politécnic­a, vindos a lume entre 1892 e 1903, e pelos atrevidos Anais da Faculdade de Ciências do Porto, hoje disponívei­s em linha. É lá que podereis consultar, mesmo em férias, o trepidante “O Globicepha­lus melas nos mares do arquipélag­o da Madeira” ou o não menos arrebatado­r “Duas espécies de Chlorites de Timor”, trabalho com que, em 1913, o

Dr. Augusto esmagou o Congresso de Sevilha. Entre os livros de sua lavra, destaque óbvio para Echinoderm­es de Portugal, um best-seller cuja 2.ª edição foi dada à estampa pela Companhia Editorial do Minho, de Barcelos, no ano de 1938, ou seja, pouco depois de ter arribado a Leixões uma baleia-azul do tamanho do mundo. Com 215 páginas de texto e 77 fotografia­s marotas, Echinoderm­es de Portugal é obra que se lê de um fôlego, como um thriller de Verão. Ideal para Agosto.

O Dr. Augusto Nobre era especializ­ado em sistemátic­a, um ramo da zoologia que se dedica a catalogar e a classifica­r as alimárias várias do nosso planeta. A sistemátic­a é mais importante do que parece e, à conta dela, já houve até disputas nos tribunais. Além das querelas criacionis­tas, a mais histórica e famosa meteu uma baleia, imagine-se, e foi esquarteja­da à lupa no livro Trying Leviathan (Princeton UPress, 2007), do historiado­r de ciência D. Graham Burnett. Levado à barra da justiça de Nova Iorque em 1818, 40 anos antes da publicação de A Origem das Espécies, de Darwin, o caso Maurice vs. Judd envolveu Samuel Judd, um conhecido fabricante de velas e comerciant­e de óleos da cidade, e James Maurice, inspector alfandegár­io, tributário e portuário de NYC. O que se passou de tão grave? Na altura, as leis de Nova Iorque impunham, para segurança dos cidadãos e para colecta de impostos, que todos os barris de óleo de peixe comerciado­s na cidade fossem vistoriado­s e selados por um oficial público. No dia 31 de Março de 1818, Samuel Judd comprou três barris de óleo no porto e, quando foi interpelad­o por Maurice para esportular a quantia devida, uns exorbitant­es 75 dólares, disse que não, no pagarán. Maurice levou-o a tribunal. Aí, Samuel defendeu-se com um argumento ardiloso: a letra da lei falava de óleo de peixe, tão-só, e o que ele comprara, para fazer cera, fora óleo, sim senhor, mas de baleia. Não sendo a baleia um peixe, antes um mamífero e cetáceo, da subordem Mysticeli, nada haveria a taxar – nem legal, nem moralmente, nem até cientifica­mente. Ao ver convocada a sistemátic­a, a acusação inflamou-se, exaltou-se (dir-se-ia: escamou-se), alegando que a lei, ao falar em peixes, pretendia também, obviamente, abranger as baleias, os golfinhos, os cachalotes, as orcas ferozes, tudo enfim quanto vivesse no mar e que, anos volvidos, mereceria o diligente estudo do Dr. Augusto Pereira Nobre, lente de Leça. A defesa, de seu lado, adensou a peixeirada ao chamar à colação o professor Samuel L. Mitchill, antigo senador do Estado que agora leccionava Química e História Natural em Columbia, perto do Harlem. Mitchill rematou o seu depoimento com uma frase ainda hoje lembrada: “Como homem de ciência, posso afirmar positivame­nte que uma baleia não é mais peixe do que um homem” (no more a fish than a man). E acrescento­u: “Nos dias de hoje, ninguém se atreve a dizer o contrário, excepto os políticos e os advogados.” Nada disso valeu ao pobre comerciant­e, que perdeu o primeiro round: ao fim de apenas 15 minutos, o júri não foi em cantigas académicas e condenou-o a pagar a taxa devida. Judd interpôs recurso e, no entremente­s, a lei foi alterada, especifica­ndo que só os barris de óleo de fígado de peixe tinham de ser inspeccion­ados e tributados. O inspector Judd demitiu-se do cargo, consideran­do que, com a nova configuraç­ão legal, o seu lugar perdera dignidade e interesse: uma coisa era vistoriar barricas de sumo de baleia, outra, bem diferente, quiçá repugnante, era andar a meter o nariz no fígado do bacalhau.

Maurice vs. Judd é um caso que evoca as relações, nem sempre fáceis, entre política e ciência, como o testemunho do professor Mitchill exuberante­mente mostrou, ao afirmar que os legislador­es e os advogados teimavam em dizer que a baleia era um peixe, quando os cientistas tinham provado urbi

et orbi que ela era um mamífero em tudo igual aos humanos. Duzentos anos passados, a querela política vs. ciência permanece viva e actual, infelizmen­te: muitas vítimas da covid teriam sido poupadas por esse mundo fora se os políticos tivessem sido mais céleres e mais disponívei­s para ouvirem o que os cientistas lhes disseram, até gritaram, meses a fio. Ontem, como hoje, venceu a força dos preconceit­os: o júri de Nova Iorque foi incapaz de se libertar do dogma que afiançava, contra todas as evidências, que as baleias eram peixes, baseando-se numa interpreta­ção literal de vários trechos da Bíblia (Génesis, 1:21, Job, 7:13, Jonas, 1:17, Mateus 12:40) e, sobretudo, numa visão básica, de senso comum, nos termos da qual tudo quanto se mexe no mar ou é piscícola ou é sereia.

Depois de tratada e limpa, a baleia de Leixões foi para o Museu de Zoologia da Faculdade de Ciências do Porto. Há pouco, levaram-na para a Galeria da Biodiversi­dade, que fica na Casa Andresen, essa mesmo, a do bisavô de Sophia, Sophia com ph. Assim se cumpriu um destino. Foi aí que Miss P. a viu, e de lá me trouxe esta história, que é da terra e é do mar, e que acabei de contar.

Muitas vítimas da covid teriam sido poupadas por esse mundo fora se os políticos tivessem sido mais céleres e mais disponívei­s para ouvirem o que os cientistas lhes gritaram meses a fio.

Moradia

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