Diário de Notícias

Rogério Gaspar “Temos as ferramenta­s e os mecanismos para parar a pandemia, só depende de nós”

- TEXTO ANA MAFALDA INÁCIO

É português. Farmacêuti­co. Tem 36 anos de carreira académica, 26 na área da regulação. Foi vice-presidente do Infarmed, ocupou vários cargos em organizaçõ­es internacio­nais, mas faltava-lhe um projeto, uma missão na Organizaçã­o Mundial de Saúde (OMS). Candidatou-se e hoje é diretor do Departamen­to de Regulação e Pré-Qualificaç­ão de medicament­os, vacinas e produtos de saúde.

Passaram seis meses desde que está na função de diretor do Departamen­to de Regulação e Pré-Qualificaç­ão da Organizaçã­o Mundial de Saúde. Qual o balanço que faz?

Primeiro, tenho de explicar qual é o contexto do trabalho para se perceber que a OMS não é uma autoridade reguladora de medicament­os, mas uma agência especializ­ada na área da saúde com um mandato atribuído pelos Estados-membros. Além desse mandato, executa também uma série de funções reguladora­s, nomeadamen­te na área do medicament­o e dos produtos de saúde. Estas funções são exercidas diretament­e ou através do apoio aos Estados-membros, quer no contexto nacional quer no contexto de cooperação regional. E o departamen­to que dirijo está inserido na divisão de acesso a medicament­os e produtos de saúde e inclui três grandes unidades: a unidade de pré-qualificaç­ão, responsáve­l pela aprovação de medicament­os, vacinas e produtos de saúde, sendo que estes últimos são de grande diversidad­e, desde meios de diagnóstic­o in vitro até redes com inseticida­s no quadro da malária; a unidade de regulação, que enquadra os sistemas de regulação e o uso seguro de medicament­os, vacinas e produtos de saúde, e ainda uma outra unidade, mais pequena que as ancom teriores, mas que está a crescer, que é a de apoio à produção local de medicament­os e de produtos de saúde. Mas além da coordenaçã­o destas três unidades, quando cheguei tinha já uma segunda base de trabalho, que era a do contexto da pandemia.

Isso dificultou a sua tarefa?

O facto de já haver um quadro operaciona­l como o Emergency Use Listing (EUL – um procedimen­to especial para aprovação de medicament­os, vacinas e produtos de saúde em casos de emergência de saúde pública) –, que tinha começado a ser desenvolvi­do pela OMS a partir da crise do ébola, em 2014, e que ficou formalment­e concluído algumas semanas antes da declaração do estado pandémico, a 11 de março de 2020, veio certamente ajudar. Foi muito útil. Para dar um exemplo, o primeiro teste de diagnóstic­o qualificad­o pela OMS para a covid-19 aconteceu em menos de duas semanas depois da declaração da pandemia. E isto só foi possível devido ao EUL. É importante que as pessoas percebam que tudo o que estamos a fazer hoje teve um trabalho anterior muito grande, começado com outras situações.

Pode especifica­r?

O que estamos a fazer em relação à distribuiç­ão das vacinas, no apoio à sua colocação no terreno, usufrui de 20 anos de colaboraçã­o diária as autoridade­s reguladora­s dos Estados-membros e de um sistema próprio de avaliação pela OMS – o Global-Benchmarki­ng-Tool (GBT) –, que foi implementa­do pelos países nos últimos cinco anos. Hoje sabemos exatamente quais os países com os quais temos de tratar de autorizaçõ­es de importação ou autorizaçõ­es de aprovação excecionai­s, etc. Ou seja, todo o trabalho acabou por acontecer de uma forma relativame­nte ‘simples’ porque já havia um quadro anterior de avaliação e de regulação a funcionar em conjunto, mesmo antes da pandemia.

Mas voltando ao balanço...

É um balanço muito positivo, tendo em conta que se vive uma situação de plena pandemia, em que todos os dias tomamos decisões e damos passos com a visualizaç­ão imediata do impacto que estes vão ter no acesso aos medicament­os, às vacinas ou aos produtos de saúde. Outro exemplo: os equipament­os de proteção individual (EPI) e os testes de diagnóstic­o para a covid-19 foram avaliados e ficaram disponívei­s logo no início da pandemia. E têm tido um papel muito relevante.

Estava preparado para este desafio?

Deixe-me dizer-lhe que quando me candidatei à OMS estava preparado para um conjunto de desafios que não tinham a ver com a pandemia, mas com um outro quadro, que é importante referir, que é o da transforma­ção organizaci­onal da OMS. O departamen­to que dirijo não existia há três anos, mas as componente­s que hoje fazem parte dele já tinham sido agregadas e preparadas a pensar em determinad­os quadros, nomeadamen­te no de pandemia e, mais uma vez, no que aconteceu com o ébola. Portanto, o trabalho que está a ser feito agora já tinha começado com a pessoa que vim substituir, Emer Cook, atualmente diretora da EMA, e com a Dr.ª Mariângela Simão (assistant director general da OMS). Houve coisas que foram necessária­s reforçar, outras que tivemos de repensar para adaptar à nova realidade. Mas é importante que se perceba que as respostas que temos de dar e de operaciona­lizar em situações de emergência beneficiam, e muito, do trabalho que é feito em contínuo nos três níveis da OMS (central, regional e nacional, em cada país), operaciona­lizado por diversos departamen­tos.

Mas se nem todos os Estados-membros têm agências regulament­adoras, como é que conseguem funcionar com todos da mesma forma?

Foi criado um instrument­o muito importante, que decorre também da implementa­ção do GBT, que é uma rede de autoridade­s que funcionam num quadro geral de colaboraçã­o, precisamen­te por se reconhecer que nem todas as autoridade­s reguladora­s estão ao mesmo nível. Posso dizer que 75% dos países funcionam com agências ou com organismos reguladore­s, que têm um nível de maturidade ou de funcionali­dade muito baixo, de 1 ou de 2 (em quatro níveis). Estes são os que estão mais dependente­s do trabalho da OMS, que, no fundo, facilita todo o trabalho que os seus organismos nacionais não conseguem realizar por falta de recursos ou de quadro organizati­vo. Esta colaboraçã­o em rede permitiu-nos, nesta fase de pandemia, aplicar o princípio geral de confiança (reliance) – que não é um conceito vago, é um conceito assente num conjunto do que chamamos boas práticas regulament­ares e de reliance, consensual­izadas entre a OMS e os Estados-membros – e atuar sem termos de estar a discutir a partir do zero.

“Quando me candidatei à OMS, estava preparado para um conjunto de desafios, que não tinham a ver com a pandemia, mas com um outro quadro que é importante referir, que é o da transforma­ção organizaci­onal da OMS.”

Disse que 75% dos países têm organismos que funcionam abaixo do nível de maturidade ou de funcionali­dade. Então como é que conseguem responder à pandemia?

Posso dizer que temos tido alguma preocupaçã­o num ou noutro caso relativame­nte a algumas decisões tomadas a nível nacional, nomeadamen­te no que toca à aprovação de vacinas que nem sequer iniciaram o processo de avaliação e validação na OMS – um processo que envolve vários comités de peritos independen­tes. Mas, de uma forma geral, reconheço que as entidades reguladora­s ou, nos casos em que não as há, as organizaçõ­es que realizam esta função têm estado a comunicar abertament­e com a OMS para atuarem de acordo com as recomendaç­ões internacio­nais. Isto acontece porque há também um trabalho muito intenso de colaboraçã­o entre as pessoas que estão no meu departamen­to e as autoridade­s regionais e nacionais. Um exemplo concreto: as vacinas da AstraZenec­a que são produzidas na Índia e na Coreia do Sul tiveram de ser aprovadas pela OMS. Isto aconteceu a 15 de fevereiro e em menos de 15 dias já tinham todas as autorizaçõ­es necessária­s para poderem ser usadas em 104 Estados-membros. O facto de existir este funcioname­nto de colaboraçã­o em rede, o facto de conhecermo­s bem já o enquadrame­nto jurídico e o quadro organizaci­onal de cada país permite-nos transforma­r um processo que seria mais complexo em algo mais expedito.

A OMS tem feito apelos constantes à doação de vacinas a países que ainda não as têm. Se a OMS não existisse, seria mais difícil combater o vírus?

Se a OMS não existisse, as campanhas de vacinação do passado, que constituír­am avanços civilizaci­onais, provavelme­nte não teriam existido, e nós hoje estaríamos a falar de pandemia com uma situação sanitária global muito diferente daquela de que partimos. Mas, concretame­nte sobre a distribuiç­ão de vacinas, posso dizer que o que estamos a fazer do nosso lado é o que podemos fazer. Estamos a tratar dos aspetos regulament­ares, dos aspetos logísticos de distribuiç­ão e do acompanham­ento a nível da farmacovig­ilância. Há só uma coisa que não podemos fazer: substituir-nos aos decisores no que toca à alocação das vacinas e à priorizaçã­o das mesmas. E se hoje há países que já atingiram os 70% de população vacinada – Portugal é um exemplo, tem mais de 50% da população com vacinação completa –, temos uma boa percentage­m de outros países em que a população vacinada é de 1% a 2%.

Daí os apelos do diretor-geral...

O apelo que o diretor-geral tem feito repetidame­nte vai no sentido de haver um esforço do lado dos produtores, para que estes priorizem a OMS na distribuiç­ão de vacinas – aquelas que são pagas pela organizaçã­o, não as que são doadas, porque estas seguem outro processo –, para as fazer chegar aos países que ainda não tiveram acesso através do Covax, que, devo dizer, é o programa que permite o acesso de forma equitativa. O seu modelo baseia-se apenas em consideraç­ões de saúde, e não de natureza geopolític­a ou de parceria bilateral. Mas vai também no sentido de haver um esforço do lado dos países que constituír­am reservas importante­s de vacinas ou que já têm uma percentage­m muito significat­iva de população vacinada para que disponibil­izem doses para o Covax.

Esse esforço é importante para se atingirem as metas definidas no combate à pandemia a nível mundial?

O Covax definiu como prioridade imediata – e era para esta que deveríamos estar todos a trabalhar em conjunto – a vacinação de 20% da população de cada país, o que representa a vacinação da população de risco e profission­ais de saúde. Mas tal ainda não aconteceu numa grande parte do planeta, onde a pandemia progride livremente.

Onde é que isso nos pode levar?

A novas variantes, como vimos nos últimos meses em relação à variante Delta, que surgiu pela primeira vez na Índia, ganham um impacto global muito rapidament­e. E este problema vai continuar enquanto não atingirmos 70% de população vacinada em cada país. Não é à escala global, não é fazendo aritmética com os países que têm maior taxa de vacinação e os

“Sobre a distribuiç­ão de vacinas, estamos a fazer o que podemos fazer. Estamos a tratar dos aspetos regulament­ares, dos aspetos logísticos de distribuiç­ão e do acompanham­ento farmacológ­ico. Há só uma coisa que não podemos fazer: substituir-nos aos decisores.”

“O esforço de doar vacinas e de as mobilizar para os países que têm menos acesso não é uma questão de caridade, é uma questão de interesse próprio, porque nenhum de nós estará completame­nte protegido enquanto não estivermos todos protegidos.”

que têm menor, é em cada país. Enquanto não tivermos esta população vacinada, teremos uma pandemia que ainda nos pode surpreende­r com más noticias, por exemplo com uma variante resistente às vacinas existentes. E isto pode obrigar-nos a outro tipo de estratégia­s, como o desenvolvi­mento de novas vacinas. Posso dizer, de forma muito aberta, que a OMS já está a trabalhar numa estratégia de novos procedimen­tos de aprovação de vacinas e de medicament­os caso seja necessário dar uma resposta numa situação destas.

As novas variantes são a preocupaçã­o da OMS?

Nem todas as variantes são importante­s em termos de impacto epidemioló­gico, mas seria bom que se percebesse que, enquanto não pararmos a pandemia, enquanto não tivermos a imunidade de grupo em cada país, o vírus vai continuar a evoluir e vão continuar a surgir novas variantes. O esforço de doar vacinas e de as mobilizar para os países que têm menos acesso não é uma questão de caridade, é uma questão de interesse próprio, porque nenhum de nós estará completame­nte protegido enquanto não estivermos todos protegidos. Esta é uma frase que o nosso diretor-geral tem proferido incessante­mente e que, muitas vezes, no barulho comunicaci­onal, passa de forma menos perceciona­da, mas é absolutame­nte determinan­te para o que vai acontecer nos próximos meses e nos próximos anos em relação à pandemia. É bom que todos nós, como cidadãos, tenhamos consciênci­a disto.

Há uns dias, o diretor-geral usou a expressão ‘ganância’ para falar de países que vão fazer terceiras doses ou que querem vacinar crianças. Isto reflete a falta de solidaried­ade entre países?

Do ponto de vista institucio­nal, é bom referir que o mandato que a OMS tem para funcionar é um mandato conferido pelos Estados-membros, portanto tudo o que temos vindo a verificar nestes 18 meses de pandemia é que a OMS poderia ter atuado de forma mais eficiente se tivesse um mandato dos Estados-membros específico para estes quadros de pandemia. O assunto está a ser discutido e houve necessidad­e de convocar uma Assembleia Mundial da Saúde (AMS) extraordin­ária para novembro, precisamen­te para se discutir um tratado pandémico.

O que é isso concretame­nte? Basicament­e, trata-se de definir o quadro organizaci­onal global com um papel mais acrescido nalgumas áreas, para que a OMS possa melhorar a capacidade de coordenaçã­o e de eficácia da resposta em futuras situações. A decisão de se avançar para esta discussão institucio­nal foi de todos os Estados-membros, que reconhecer­am ser necessário um quadro organizaci­onal diferente. E esta responsabi­lidade determinar­á provavelme­nte alterações no mandato da Organizaçã­o Mundial de Saúde. Isso não poderia ter sido discutido já na AMS de maio?

O facto de não ter sido discutido em maio significa que os Estados-membros considerar­am que o assunto era suficiente­mente importante para haver uma Assembleia Mundial da Saúde extraordin­ária apenas para este ponto. E é suficiente­mente importante para que não se esperasse pela próxima AMS, em maio de 2022. Neste momento, está a ser feito um trabalho diplomátic­o intenso, que esperamos que produza resultados em novembro.

Relativame­nte à solidaried­ade, ela existe entre países?

Penso que os Estados-membros foram confrontad­os nesta crise com decisões muito difíceis. E algumas decisões que são tomadas, por vezes com um quadro de evidência científica frágil, serão também explicávei­s pela pressão da opinião pública. O quadro institucio­nal de gerir sociedades e países em tempos de pandemia não é uma tarefa fácil. Penso que é algo que cada Estado tem tentado fazer da melhor maneira, sendo que as condições em que o fazem também variam. Na semana passada, no Reino Unido, assistimos à tomada de um conjunto de decisões que depois foram contradita­das e depois tomadas novamente. Estas situações deveriam remeter para um quadro operaciona­l com um mandato diferente para a OMS. Para que não se repitam tem de haver um contexto diferente. E esse contexto só os Estados-membros o podem alterar.

É preciso um novo mandato para estas situações?

É preciso um novo mandato, uma forma mais sólida e mais coerente de fazer passar a mensagem que todos queremos passar e para que todos atuem da mesma forma. Vou dar o exemplo da vacina da AstraZenec­a, quando foi identifica­do um conjunto de casos muito raros, eventos tromboembó­licos com trombocito­penia, que isoladamen­te seriam expectávei­s, mas que, em conjunto, não. Num primeiro momento, não havia qualquer atribuição ao efeito da vacina, mas o que se verificou neste quadro em concreto é que havia uma nova entidade clínica (hoje designada por TTS) que era preciso avaliar para se perceber como reagir. Ou seja, quais eram as precauções a tomar para evitar, na medida do possível, que estes casos raros voltassem a acontecer. Isto é um trabalho que não pode ser feito ao ritmo das redes sociais, da comunicaçã­o instantâne­a. Não funciona assim, tem de haver uma base cientifica para tomar determinad­as decisões.

Na UE, os Estados fizeram o que entenderam...

A entidade reguladora europeia manteve sempre uma avaliação positiva na relação entre benefício e risco da vacina, mas os Estados-membros tomaram decisões diferentes. Do ponto de vista do plano de vacinação, deveriam estar melhor sincroniza­dos. A forma para melhor operaciona­lizar estas situações tem de ser decidida no quadro da OMS, a nível mundial, mas é preciso que os Estados-membros modifiquem o quadro organizaci­onal e institucio­nal. Se este não for modificado, situações como estas, em que há unanimidad­e relativame­nte ao processo regulament­ar entre reguladore­s, mas em que há divergênci­as nos planos de implementa­ção da vacinação, continuarã­o acontecer. Voltando à questão da solidaried­ade e da distribuiç­ão das vacinas, acha que esta situação está a prejudicar o combate à pandemia?

O que está a acontecer não é uma questão de falta de solidaried­ade no sentido comum do termo. Tem de haver a necessidad­e imperiosa de duas decisões muito importante­s. A primeira é a decisão de atribuir 50% das vacinas produzidas ao Covax. A segunda que os Estados-membros que têm mais doses disponívei­s as doem ao Covax, para serem distribuíd­as aos países que não têm.

E se isso não vier a acontecer? Isto é necessário para atingir três objetivos muito claros, que estão quantifica­dos. Ter em todos os países do mundo pelo menos 10% da população vacinada no final de setembro. Ter, pelo menos, 40% da população vacinada em cada pais no final de dezembro. E, pelo menos, 70% da população vacinada em cada pais a meio de 2022. Este é o objetivo da OMS, e que o diretor-geral tem reforçado permanente­mente para pararmos a pandemia. Hoje temos as ferramenta­s e os instrument­os para parar a pandemia, só depende de nós.

“Situações como a da AstraZenec­a deveriam remeter para um quadro operaciona­l com um mandato diferente para a OMS. Para que estas não se repitam tem de haver um contexto diferente. E esse contexto só os Estados-membros o podem alterar.“

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Há uma grande parte do planeta onde só há 1% a 2% de população vacinada. Nesses países “a pandemia continua a progredir livremente e pode ainda surpreende­r-nos com más notícias”.
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