O iliberal que sai, o iliberalismo que entra
Munido do seu usual talento estratégico, Rui Rio decidiu dar uma entrevista de inversão de marcha em vésperas de autárquicas. Lendo-a, é impossível não colher uma ideia de toalha atirada ao chão. “O que Passos Coelho disse é o que eu estou a fazer”, diz Rio, que ainda há dias votava favoravelmente um relatório que acusa o governo de Passos de “fraude” e que teve como vice-presidente uma ex-bastonária que processou esse governo. “Agora, parti para uma etapa diferente”, veio também anunciar, assumindo que os últimos três anos de aproximação ao Partido Socialista não produziram frutos. O PS não quer reformar, queixa-se o presidente do PSD. E precisou de seis anos de António Costa no poder para perceber isso. Entretanto, o PS beneficiou de uma liderança de oposição passiva e a direita, precisamente por isso, dividiu-se à procura de si mesma. Em ambas, no agigantamento socialista e na fragmentação não-socialista, Rui Rio tem responsabilidades. Mais do que consequências para o seu partido, o fracasso dessa estratégia desfigurou um sistema político, em si, já erodido.
Com a eventualidade da sua saída cada vez menos evitável, é tempo de olhar este seu mandato. Além dos insucessos, que não foram poucos, a entrevista que deu ao Expresso facilita a tarefa. A sua proposta de revisão constitucional, um desafio, convém lembrar, que Marcelo lançou aos partidos na noite da sua reeleição, é visivelmente mais próxima do Chega do que do Partido Socialista. Excetuando o círculo de compensação nacional, ao estilo açoriano, as ideias de Rio são siamesas das reivindicações de Ventura: menos deputados no Parlamento, mais poderes na Presidência. Ora, tal poderia passar por coincidência, não fosse o discurso profundamente antidemocrático de Rio na referida entrevista. As eleições, considera, são uma chatice. Ocupam quem governa e atrapalham-no a ele, que nem governou. Nos seus quase quatro anos à frente do PSD, conta Rio, disputou: regionais na Madeira, europeias, legislativas, regionais nos Açores e, agora, autárquicas. Uma maçada, isto das eleições, hein? Especialmente quando se perdeu a maioria na Madeira, se foi derrotado tanto nas europeias como nas legislativas e não se conseguiu ser o mais votado nos Açores, ficando dependente de apoios parlamentares. Assim, verdade seja dita, compreende-se a alergia de Rio a atos eleitorais: nunca os vence. Em setembro, nas autárquicas, não será diferente.
Resta-nos, portanto, o Partido Socialista. E se o rioísmo está à beira de descobrir a sua vacina, a tarefa do PS não é menos espinhosa. Atingido o seu zénite de popularidade, os socialistas enfrentam um problema de remodelação, sucessão e adição. Para a remodelação, não encontram agenda ou quadros. Para a sucessão, não desvendam unanimidade ou calendário. Para a adição, sofrem de um mal pouco comum: é o vício que gere o seu próprio desmame; isto é, António Costa.
Mais do que isso, o problema do PS é uma discreta mas acelerada descaracterização. Primeiro, deixou de ser centrista, pela urgência pós-eleitoral de aproximação à esquerda. Depois, deixou de ser reformista, por depender na Assembleia de votos dessa esquerda e por anseio – justificado – de estabilidade. Finalmente, e isso sobressaiu na pandemia, deixou de ser liberal (ou devoto à liberdade, se preferirem). As medidas de restrição, o negligenciar permanente da lei fundamental, o artigo 6.º da Carta da Era Digital, as putativas alterações ao direito de manifestação. Se ninguém for capaz de entender os riscos deste caldo de incultura democrática – germinado nos dois grandes partidos –, ele florescerá. Surgirá um médico, um militar, uma das autoridades hoje em voga, que, do alto de uma fatiota engomada, proclamará quatro palavras familiares, que nunca significam nada de bom: eu não sou político.
Verdade seja dita, compreende-se a alergia de Rio a atos eleitorais: nunca os vence. Em setembro, nas autárquicas, não será diferente.