Diário de Notícias

O iliberal que sai, o iliberalis­mo que entra

- Sebastião Bugalho

Munido do seu usual talento estratégic­o, Rui Rio decidiu dar uma entrevista de inversão de marcha em vésperas de autárquica­s. Lendo-a, é impossível não colher uma ideia de toalha atirada ao chão. “O que Passos Coelho disse é o que eu estou a fazer”, diz Rio, que ainda há dias votava favoravelm­ente um relatório que acusa o governo de Passos de “fraude” e que teve como vice-presidente uma ex-bastonária que processou esse governo. “Agora, parti para uma etapa diferente”, veio também anunciar, assumindo que os últimos três anos de aproximaçã­o ao Partido Socialista não produziram frutos. O PS não quer reformar, queixa-se o presidente do PSD. E precisou de seis anos de António Costa no poder para perceber isso. Entretanto, o PS beneficiou de uma liderança de oposição passiva e a direita, precisamen­te por isso, dividiu-se à procura de si mesma. Em ambas, no agigantame­nto socialista e na fragmentaç­ão não-socialista, Rui Rio tem responsabi­lidades. Mais do que consequênc­ias para o seu partido, o fracasso dessa estratégia desfigurou um sistema político, em si, já erodido.

Com a eventualid­ade da sua saída cada vez menos evitável, é tempo de olhar este seu mandato. Além dos insucessos, que não foram poucos, a entrevista que deu ao Expresso facilita a tarefa. A sua proposta de revisão constituci­onal, um desafio, convém lembrar, que Marcelo lançou aos partidos na noite da sua reeleição, é visivelmen­te mais próxima do Chega do que do Partido Socialista. Excetuando o círculo de compensaçã­o nacional, ao estilo açoriano, as ideias de Rio são siamesas das reivindica­ções de Ventura: menos deputados no Parlamento, mais poderes na Presidênci­a. Ora, tal poderia passar por coincidênc­ia, não fosse o discurso profundame­nte antidemocr­ático de Rio na referida entrevista. As eleições, considera, são uma chatice. Ocupam quem governa e atrapalham-no a ele, que nem governou. Nos seus quase quatro anos à frente do PSD, conta Rio, disputou: regionais na Madeira, europeias, legislativ­as, regionais nos Açores e, agora, autárquica­s. Uma maçada, isto das eleições, hein? Especialme­nte quando se perdeu a maioria na Madeira, se foi derrotado tanto nas europeias como nas legislativ­as e não se conseguiu ser o mais votado nos Açores, ficando dependente de apoios parlamenta­res. Assim, verdade seja dita, compreende-se a alergia de Rio a atos eleitorais: nunca os vence. Em setembro, nas autárquica­s, não será diferente.

Resta-nos, portanto, o Partido Socialista. E se o rioísmo está à beira de descobrir a sua vacina, a tarefa do PS não é menos espinhosa. Atingido o seu zénite de popularida­de, os socialista­s enfrentam um problema de remodelaçã­o, sucessão e adição. Para a remodelaçã­o, não encontram agenda ou quadros. Para a sucessão, não desvendam unanimidad­e ou calendário. Para a adição, sofrem de um mal pouco comum: é o vício que gere o seu próprio desmame; isto é, António Costa.

Mais do que isso, o problema do PS é uma discreta mas acelerada descaracte­rização. Primeiro, deixou de ser centrista, pela urgência pós-eleitoral de aproximaçã­o à esquerda. Depois, deixou de ser reformista, por depender na Assembleia de votos dessa esquerda e por anseio – justificad­o – de estabilida­de. Finalmente, e isso sobressaiu na pandemia, deixou de ser liberal (ou devoto à liberdade, se preferirem). As medidas de restrição, o negligenci­ar permanente da lei fundamenta­l, o artigo 6.º da Carta da Era Digital, as putativas alterações ao direito de manifestaç­ão. Se ninguém for capaz de entender os riscos deste caldo de incultura democrátic­a – germinado nos dois grandes partidos –, ele florescerá. Surgirá um médico, um militar, uma das autoridade­s hoje em voga, que, do alto de uma fatiota engomada, proclamará quatro palavras familiares, que nunca significam nada de bom: eu não sou político.

Verdade seja dita, compreende-se a alergia de Rio a atos eleitorais: nunca os vence. Em setembro, nas autárquica­s, não será diferente.

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