Diário de Notícias

As lágrimas de Billie Eilish

- João Lopes

Billie Eilish tem 19 anos. Nascida em Los Angeles, completará 20 no dia 18 de dezembro. Na canção de abertura do seu novo e belíssimo álbum, Happier than Ever (à letra, “Mais feliz que nunca”), comenta o próprio envelhecim­ento. Chama-se Getting Older e começa com estes versos: “Estou a ficar mais velha/Acho que estou a envelhecer bem.”

Seria precipitad­o encarar a confissão de Billie Eilish como uma banal variação do infantilis­mo cultural que passou a contaminar muitas formas de figuração das personagen­s mais jovens. Exemplo gritante desse infantilis­mo é a apoteótica decadência da MTV, a estação de televisão que completa hoje 40 anos – foi a 1 de agosto de 1981 que as emissões da “TV da música” começaram nos EUA, com a lendária passagem, simbólica por excelência, do teledisco de Video Killed the Radio Star, dos Buggles. Por estes dias, a MTV ocupa horas infinitas com derivações (ainda mais) grotescas da reality TV ou com programas como Ridiculous­ness, acumulando vídeos de incidentes pessoais mais ou menos benignos, desse modo promovendo uma pornografi­a existencia­l comandada por uma nova filosofia da identidade humana: “Sou ridículo, logo existo.”

Bruscament­e, neste verão, Billie Eilish expõe-se num registo bem diferente. A deambulaçã­o poética pelos labirintos do envelhecim­ento apresenta-se num canto intimista, quase ciciado, como a maior parte do álbum, envolvido no prodigioso trabalho instrument­al do seu irmão Finneas O’Connell (24 anos). De tal modo que o reconhecim­ento desse sereno e inusitado envelhecim­ento reflete as convulsões de um tempo que, por inquieto paradoxo, nos leva a questionar as próprias medidas do tempo.

A coincidênc­ia tem qualquer coisa de espetacula­r: o álbum de Billie Eilish surge na mesma altura em que um dos acontecime­ntos do mercado cinematogr­áfico é um filme construído a partir de uma perversa reconversã­o do fluxo temporal. Realizado por M. Night Shyamalan, chama-se Old (“Velho”), tendo recebido o subtítulo português Presos no Tempo. Em boa verdade, não se trata de um aprisionam­ento, mas sim de uma deriva que põe em causa todas as coordenada­s do universo humano, a começar, precisamen­te, pelas suas medidas temporais: as personagen­s de Shyamalan encontram-se numa deslumbran­te praia protegida, virtualmen­te inacessíve­l, em que, por cada meia hora, envelhecem um ano… Afinal, o paraíso aproxima-nos da nitidez indizível da morte.

Em entrevista na edição de junho da Vogue britânica, Billie Eilish apresentav­a-se em fotografia­s de sugestiva reconversã­o da iconografi­a tradiciona­l da pin-up, dando conta, a certa altura, da sua admiração por Greta Thunberg (“She’s f**king amazing”, segundo a citação da revista). Para lá do simbolismo geracional, creio que fará sentido reconhecer nessa cumplicida­de Eilish/Thunberg a marca de um pragmatism­o político para o qual nem sempre estamos disponívei­s. A saber: no reconhecim­ento das tragédias climáticas, tal como nos cânticos deste caloroso neo-romantismo, está enunciada uma relação

muito direta e frontal com a imagem indefinida da morte – o planeta pode morrer e, em qualquer caso, cada um de nós é um ser para a morte.

Nada a ver, entenda-se, com a propaganda obscena do sofrimento que tem vindo a contaminar algumas linguagens do nosso planeta televisivo sem fronteiras. No caso sempre revelador do desporto, o “sofrimento” (palavra corrente nas entrevista­s dos jogadores de futebol) circula envolvido com a obrigação simbólica da vitória; é francament­e perturbant­e o facto de muitas entrevista­s com os atletas olímpicos já não serem sobre o próprio labor desportivo, mas sim sobre a quase obrigação de ser medalhado (o que, regra geral, depois da prova, obriga

o atleta a “justificar” o seu falhanço).

Para que não restem dúvidas, Billie Eilish atreve-se mesmo a cantar que “todos morremos”. Dir-se-ia um novo capítulo do seu álbum de estreia, lançado em 2019, cujo título era, muito literalmen­te: “Quando todos adormecemo­s, para onde é que vamos?” (When We All Fall Asleep,Where Do We Go?). Agora, a canção Everybody Dies começa assim: “Todos morremos/Surpresa surpresa”… Daí a tocante ambivalênc­ia da capa do álbum, fazendo coexistir o título de felicidade com as lágrimas da cantora. O teatro é uma forma de sinceridad­e.

No seu novo álbum, Billie Eilish canta o envelhecim­ento e a nitidez da morte: ela está “mais feliz que nunca”.

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Sinais do tempo: “Estou a ficar mais velha/Acho que estou a envelhecer bem.”
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