Teorema do Olof Palme infinito
A verdade é que os gabinetes, salas de espera e casas de banho onde muitos sound bites memoráveis começam a sua vida também pertencem à realidade histórica, antes de sofrerem as mutações da fama. O processo é contínuo e não exige a multiplicação infinita de Olof Palme.
Édifícil saber quem culpar, mas um forte candidato parece ser Fernando Savater.
Pelo menos foi o escritor espanhol quem mais se empenhou em circular o diálogo (repetiu-o em várias entrevistas na última década) e quem fixou a sua forma mais conhecida numa crónica para o jornal argentino Clarín, em 2010.
“Conta-se que”, começa Savater, estabelecendo imediatamente as dúbias credenciais da história, numa visita à Suécia logo após a Revolução de Abril, um “ufano” Otelo Saraiva de Carvalho (“um dos seus mais radicais e menos ilustres representantes”) disse a Olof Palme que o seu programa de reformas consistia em “acabar com os ricos”, ao que Olof Palme teria respondido: “Curioso, o que nós queremos é acabar com os pobres.”
A história foi tendo alguma rodagem por cá nesse período, com mínimas variações. Só nos últimos cinco anos foi repetida nas páginas do jornal i (por José António Girão), do Observador (por Bruno Pinho) e até aqui, no Diário de Notícias (por Sérgio Figueiredo, duas vezes). Em alguns blogues ainda se encontram iterações com Soares ou Cunhal como co-protagonistas de Palme. Mas foi a versão de Savater – com aquele teatral “curioso”, uma espécie de emblema de artificialidade – que chegou ao Twitter no dia da morte de Otelo, graças ao professor Tiago Moreira de Sá, que garantiu a sua veracidade e portanto gerou um breve, mas extenuante, circuito de manutenção pela internet, com várias pessoas a tentarem confirmar ou desmentir a interacção.
O que não faltam, como seria de esperar, são protótipos e precedentes, havendo tempo e pachorra para os procurar. Num perfil de Gordon Brown publicado no Guardian em 2007, o então primeiro-ministro inglês contava a mesma história – enquadrando-a claramente como uma anedota, e com Reagan no lugar de Otelo (fazendo uma pergunta receosa a Palme, em vez de uma arrebatada declaração doutrinária). A trama adensa-se com um artigo do New York Times de 1982, um perfil de Felipe González (Spain’s New Leader: Young Lion of the Left) no qual se lê o seguinte: “Quando lhe perguntaram se, quando chegasse ao poder, pretendia expropriar os ricos, respondeu, ‘não, o que queremos é acabar com os pobres’.” Curiosamente, o vice de González, Alfonso Guerra, é mencionado em vários compêndios espanhóis de citações online como “autor” da mítica frase. E uma última e inesperada pista surge na entrevista de outro histórico do PSOE, Eligio Hernández, dada em 2016 ao Diario de Avisos, um jornal das Canárias, na qual conta que na década de 70 assistiu em Estugarda a um debate entre Willy Brandt e Honecker: “Eu não gostava que me chamassem social-democrata até esse dia, mas Willy Brandt abriu-me os olhos. Recordo que a meio do debate ele disse a Honecker, ‘você quer acabar com os ricos, mas eu quero acabar com os pobres’.”
Não é impossível que Willy Brandt tenha de facto cinzelado espontaneamente esse epigrama num debate em Estugarda, mas tão ou mais provável é que Hernández tenha feito aquilo que muitas outras pessoas fizeram antes dele: ouviu tantas vezes um sound bite que se convenceu de estar presente na sua origem, e editou as suas próprias memórias em conformidade. Outro fenómeno relevante é aquilo a que Nigel Rees chama Churchillian drift (ou “deriva churchilliana), que é a tendência de qualquer frase vagamente interessante para ser engolida pelo campo gravitacional da reputação maior, o que explica a variedade de frases incorrectamente atribuídas aos suspeitos do costume: Mark Twain, Oscar Wilde, Einstein, Gandhi ou o próprio Churchill.
O propósito pode ser inspirar, consolar ou refutar, mas o mecanismo é sempre o mesmo: converter um sentimento comum num pacotinho de sabedoria portátil – algo que traduza um estilo de verdade essencialmente confortável – e caucioná-lo com o nome de figuras históricas, assim promovidas a talismãs, protegendo generosamente aquilo em que já decidimos acreditar. Uma das consequências da escassez de vultos que costumam agregar as “citações” disponíveis é que as suas próprias reputações são deformadas pelo processo. Alguns dos “episódios” demonstravelmente falsos que se consolidaram à volta de Churchill (“amanhã estarei sóbrio, mas você continuará feia”) ou George Best (“gastei muito dinheiro em carros, mulheres e álcool, o resto esbanjei”) servem quase o propósito oposto da função original da deriva churchilliana: em vez de reforçar a verdade de uma ideia atrelando-a a uma reputação, acabam por reforçar a ideia de uma reputação ilustrando-a com citações convenientes. Churchill e Best eram o tipo de pessoas que diriam aquelas coisas, portanto é útil que as tenham dito, por muito injusto que isso seja para, por exemplo, W. C. Fields.
Estes exercícios de arqueologia podem ser divertidos, mas não deixa de ser um erro de categoria tratar o pseudodiálogo de Otelo e Palme como um problema de fact-checking e submetê-lo aos instrumentos tradicionais de verificação e corroboração. Devia ser evidente só pela forma e pela cadência que não estamos perante o registo de um evento histórico (agentes históricos raramente falam como actores numa peça de Coward ou num guião de Sorkin), mas perante uma fábula moral – com maleabilidade suficiente para acomodar outras versões e protagonistas em culturas e períodos diferentes.
A fábula em questão vem com o seu tema à superfície, exuberantemente exposto: é sobre os perigos do radicalismo e as virtudes da moderação. Tal como as histórias sobre Churchill ou George Best, também tenta fixar personalidades, neste caso não as de indivíduos concretos, mas de estereótipos. De um lado, o temperamento radical genérico – exaltado, vingativo, ignorante –, tão cego pelo seu próprio extremismo que nem sequer se apercebe da cilada que a sua retórica lhe preparou. Do outro, o temperamento moderado genérico: tão razoável, tão sensato, tão humanista – e com tanta razão do seu lado que lhe basta inverter uma palavra para ficar do lado certo da história, e da História.
Tal como outras citações fabricadas, o diálogo de Otelo e Olof Palme existe apenas para ser reproduzido, e para que essa reprodução suscite um conjunto de reacções predeterminadas, já equipadas com reticências significativas. O diálogo é “todo um tratado…”, ou “continua tão actual…”, ou “diz tudo sobre o nosso país…”. A vantagem das coisas que “dizem tudo” é que não é preciso dizer mais nada, e podem servir como substitutos para todos os atalhos complacentes que seguimos até chegarmos às opiniões que hoje queremos ter.
É curioso que histórias como esta – com a consistência, densidade e sofisticação de um provérbio popular, ou de uma anedota do Bocage – não se contentem com as ironias dramáticas e simetrias confortáveis da sapiência folclórica, da anedota inócua e da ficção middlebrow, mas também procurem a autoridade conferida pela sua suposta factualidade – por terem realmente acontecido. É como se o processo de certificação de opiniões não fosse satisfatório até permitir essa reacção de surpresa triunfante: eis aquilo em que sempre quis acreditar, e logo no seu habitat natural – a realidade histórica. A verdade é que os gabinetes, salas de espera e casas de banho onde muitos sound bites memoráveis começam a sua vida também pertencem à realidade histórica, antes de sofrerem as mutações da fama. O processo é contínuo e não exige a multiplicação infinita de Olof Palmes. Até porque, como disse Estaline, um Olof Palme é uma tragédia, mas um milhão de Olof Palme é uma estatística.