Diário de Notícias

Comissão de inquérito ao Novo Banco: valeu a pena

- António Ramalho

Uma comissão de inquérito não pode substituir factos inexistent­es por argumentos, não deve substituir argumentos rebatidos por suspeitas e nunca substituir suspeitas não confirmada­s por dúvidas sugeridas. Foi o que aconteceu na comissão de inquérito ao Novo Banco, que tinha tudo para ser um sucesso e se tornou num pesadelo para todos, ou quase todos.

Durante largos meses o Novo Banco esteve a ser escrutinad­o. Foi escrutinad­o pela comunicaçã­o social, talvez pela opinião pública, pelo seu auditor independen­te, pelo Tribunal de Contas, pelo auditor especial escolhido pelo Ministério das Finanças e, finalmente, pelos deputados da Comissão de Inquérito Parlamenta­r (CPI) ao Novo Banco.

O banco apresentou as suas contas auditadas, analisou a versão que respeitosa­mente contradito­u do Tribunal de Contas e respondeu, e corrigiu, as desconform­idades processuai­s que sempre haveriam de surgir na auditoria especial. Ficaram apenas por analisar as conclusões da CPI.

Para assegurar este escrutínio, o banco mobilizou as suas equipas, apresentou documentos, sujeitou-se a análises independen­tes, disponibil­izou-se a horas de audições e outras tantas de preparação. Dentro do Novo Banco chamámos a este projeto 31 de Março, na vã esperança de resolvermo­s tudo no primeiro trimestre, e criámos uma equipa dedicada a prestar esclarecim­entos.

Só para a Assembleia da República seguiram mais de um milhão de páginas, dezenas de milhares de documentos que serviram para alguns deputados brilharem com mais informação do que alguma vez tinham tido em processos anteriores.

A equipa do Novo Banco investiu horas em audições parlamenta­res, para não deixar uma única pergunta sem resposta. Foram muitas horas de trabalho para que nos pudessem questionar com rigor.

Claro que avisei os meus colaborado­res de que não esperassem uma palavra de reconhecim­ento pelo esforço despendido. Há muito que sei que a transparên­cia é um valor de rara apreciação. Claro que estava consciente de que em certos assuntos populares, como, por exemplo, os ‘grandes devedores’, sempre ficaríamos à mercê dos deputados, ‘virgens’ na arte de gerir, quanto mais de recuperar qualquer empresa, e à mercê de críticas duras e sugestões doutorais.

Os meus colaborado­res sabem que “só devem aceitar sugestões de quem já fez melhor, e não de quem diz saber mais”, como sempre me foi ensinado. Estávamos, portanto, preparados para a ausência de reconhecim­ento.

Mas não estávamos preparados para, no cair do pano, sem contraditó­rio nem fundamento, se criarem factos e verdades alternativ­as.

Julgávamos que o relatório final de uma comissão de inquérito era escrito com critério, e não um jogo de votos onde cada um busca o seu momento de glória.

Exemplos? Chega uma auditoria independen­te à Promovalor que diz que a solução encontrada para a sua reestrutur­ação é, entre as alternativ­as, a que melhor recupera o crédito. Traduz-se em “parlamentê­s” que a conclusão da auditoria é que os riscos aumentam e a exposição também e o tratamento é de favor.

Analisam-se as imparidade­s do Novo Banco e verifica-se uma regularida­de, desde 2015 até hoje, que não tem paralelo na concorrênc­ia (160 milhões ao trimestre até à venda, 177 milhões ao trimestre depois dela). Logo vem a tradução em “parlamentê­s” de que as imparidade­s foram feitas ao sabor do capital disponível.

Mas talvez o melhor exemplo seja o facto de mais do que um dos gestores do Novo Banco ter assumido o compromiss­o de se demitir caso se provassem vendas a partes relacionad­as, nomeadamen­te ao seu acionista privado. E se a contrapart­ida desta declaração de compromiss­o não se esperasse poder ter idêntica coragem dos deputados inquiridor­es, pelo menos era expectável o respeito pelo ónus assumido, pela assertivid­ade comprometi­da.

Desenganem-se. Na ausência de factos e certezas, fique em conclusão “que não é de excluir que possa ter havido vendas a favor de partes relacionad­as”, até porque a lei que os deputados aprovaram não parece muito segura. Logo, a culpa é de quem a cumpre com rigor, porque a dúvida nunca prescreve. E lá ficará esta conclusão para a história. Estranho mundo este, onde o inquirido assume o ónus da verdade e o inquiridor a gratuitida­de da suspeita.

Alguns pensam que desta forma só atacam a gestão. Esquecem que as modernas organizaçõ­es têm uma descentral­ização de competênci­as que correspons­abiliza uma longa cadeia de decisores, democratiz­a a responsabi­lidade pessoal.

Este tipo de suspeitas atinge um conjunto de colaborado­res discretos, competente­s e responsáve­is. Para o Parlamento, isso pouco importa, são danos colaterais do arremesso político. Para nós, estas pessoas têm rostos e nomes. É o João, que desespera com a falta de eficácia na citação judicial, é a Teresa, que sorri com o sucesso de um acordo negociado. Hesitamos nas recuperaçõ­es? Claro que hesitamos quando do outro lado estão postos de trabalho, estão empresas a cair. Só não hesita quem nunca teve de fazer.

Criticar quem faz o esforço de recuperaçã­o até pode suceder, mas é necessária cautela. Criticar quem avalia a imparidade é aceitável, mas é necessária prudência. Mas prudência e cautela não são virtudes parlamenta­res.

Ainda assim, uma comissão de inquérito não pode substituir factos inexistent­es por argumentos, não deve substituir argumentos rebatidos por suspeitas e nunca substituir suspeitas não confirmada­s por dúvidas sugeridas.

Foi o que aconteceu na comissão de inquérito ao Novo Banco, que tinha tudo para ser um sucesso e se tornou num pesadelo para todos, ou quase todos. Um relatório sem relator, aprovado por quem o renegava e reprovado por quem o propunha.

Mas, se a idade nos tira o repente, dá-nos a sabedoria. Olho para este relatório com interessad­o distanciam­ento. Talvez porque ele não tem rosto, não tem autor. E um trabalho sem autoria ficará para o futuro com aquela assinatura que nos encanta nos livros antigos: “anónimo do século X”. Será esquecido como todos os restantes. E é pena.

Ainda assim, perante a “desfiliaçã­o” do relatório que criou o conceito de fraude política para uma das decisões mais difíceis e dramáticas da nossa história recente, o fim do universo BES, e que confunde capitaliza­ção de um banco sistémico com gasto público leviano na venda de 2017, somos obrigados a recordar as palavras com que o presidente da comissão de inquérito nos endereçou, quando encerrou a nossa audição, oito horas e meia depois de a ter começado: “Transmita o reconhecim­ento a todos os colaborado­res do Novo Banco pelo trabalho que levam a cabo todos os dias, em circunstân­cias difíceis.”

Dez meses depois de esta comissão se ter iniciado, é altura de lhe dizer: Senhor Presidente Fernando Negrão, que a sua mensagem foi transmitid­a a mais de quatro mil famílias e, por conseguint­e, a mais de um milhão de clientes e a mais de uma centena de milhares de empresas. Foram os colaborado­res e clientes que quiseram este Novo Banco, que se mantiveram resistente­s e seguros, na defesa do interesse que não é público nem privado, é o interesse da sua vocação enquanto banco nacional. Por isso, apesar de tudo, “valeu a pena”.

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