Diário de Notícias

“Este era o projeto que me faltava” MUDANÇA

Foi por vontade própria que se candidatou a um cargo de direção na OMS. A família apoiou-o, mas a adaptação foi relativame­nte fácil. E ao fim de seis meses diz que o balanço é positivo.

- anamafalda­inacio@dn.pt

Vamos ao lado pessoal. O ir para um cargo na OMS era uma vontade sua, uma missão na sua carreira ou apareceu de forma inesperada?

O candidatar-me a um lugar numa agência especializ­ada como a OMS foi algo que partiu de uma vontade própria. Ao contrário de outras posições para as quais somos designados por convite, neste caso tive de passar por provas de seleção, portanto houve uma vontade pessoal para realizar o trabalho que estou a fazer. Explicar como cheguei a esta vontade seria uma longa história, mas, para simplifica­r, posso dizer que ao fim de 36 anos de carreira académica e há 26 a trabalhar diretament­e com o sistema regulament­ar dos medicament­os, este era, talvez, o projeto que me faltava. Portanto, foi uma reflexão pessoal, e obviamente com a família, que me levou à candidatur­a a um lugar de direção na OMS. E foi fácil?

Não. São candidatur­as com vários passos e muito competitiv­as. Para lhe dar um horizonte temporal do processo, a minha candidatur­a foi submetida em fevereiro de 2020 e a decisão comunicada a 27 de novembro. No dia 11 de setembro, entrei para uma short list. Recordo-me da data porque no dia em que recebi o e-mail a informar-me de que tinha entrado nesta short list estava a entrar para uma cerimónia oficial na Faculdade de Farmácia. Era a tomada de posse da nova diretora da Faculdade, cuja eleição tinha sido eu, como presidente do Conselho de Escola, a supervisio­nar.

Foi um abanão?

Acho que do ponto de vista pessoal abanaria qualquer pessoa. Ia falar sobre o futuro da faculdade, do trabalho a realizar no quadro de um plano estratégic­o a cinco anos, e tinha acabado de saber que estava numa lista de nomes para ocupar o cargo a que me candidatei. Depois, foram dois meses de várias entrevista­s, com abordagens diferentes, porque é natural que a avaliação da pessoa que vai ocupar um cargo destes passe por etapas diferentes, que foquem aspetos de gestão, de natureza técnica e de capacidade de recrutamen­to de financiame­nto.

O que sentiu quando soube da decisão. Também foi por e-mail?

Não. Foi através de um telefonema pessoal do diretor-geral da OMS, porque ele faz questão de ser o primeiro a dar a informação. É um estilo próprio do Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesu­s em relação ao recrutamen­to de pessoal para cargos na sua equipa. Tinha falado com ele na véspera, para uma última entrevista, e ele disse-me que a decisão seria comunicada em 48 horas. Quando recebi o seu telefonema ao fim de 24 horas, fui apanhado de surpresa, pois sempre pensei que usasse as 48 horas para comunicar a decisão.

Como é que a família reagiu?

A família estava preparada de alguma forma, porque sem o apoio dela seria impossível fazer isto. Podemos planear alguns aspetos, mas há sempre obstáculos ou dificuldad­es que surgem e que colocam desafios à organizaçã­o familiar e só é possível ultrapassá-los quando a decisão é assumida em termos familiares, e não individual­mente.

Como foi passar da faculdade para o gabinete da OMS?

O tempo de adaptação ao trabalho foi rigorosame­nte zero. No primeiro e no segundo dias já estava a participar em reuniões. Três semanas depois estava a coordenar reuniões com os parceiros que nos providenci­am os meios para realizar o trabalho necessário. Isto é importante explicar, porque é algo que provavelme­nte o cidadão em geral desconhece. A OMS não é só a sede em Genebra, temos seis escritório­s regionais sediados em Washington, Copenhaga, Cairo, Brazzavill­e, Manila e Nova Deli, e escritório­s em cada um dos Estados-membros. O estar em Genebra facilita a comunicaçã­o com as outras regiões, mas significa que podemos ter reuniões a qualquer hora do dia ou da noite na Suíça. A OMS funciona 24 horas por dia nos sete dias da semana.

Mas foi uma transição fácil?

Foi uma transição relativame­nte fácil. Em primeiro lugar, porque tenho um extraordin­ário grupo de coordenaçã­o. E aqui tenho de referir o apoio e a liderança da minha coordenado­ra direta, a Dr.ª Mariângela Simão, médica brasileira, com grande experiênci­a nas Nações Unidas, onde esteve sete anos na ONUSIDA, e mais quatro já na OMS, como assistent director general, bem como a liderança do diretor-geral, o Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesu­s, já que a sua capacidade de liderança e motivação faz com que haja um grupo coordenado­r que funciona muito bem e com grande entrosamen­to. Em segundo lugar, diria que teve a ver com a minha experiênci­a profission­al – sou farmacêuti­co, doutorado na área da tecnologia farmacêuti­ca, a trabalhar desde 1986 na área da nanomedici­na e nanomedica­mentos. E o momento que vivemos é particular­mente interessan­te porque duas das vacinas que avançaram de imediato contra a covid-19 eram da área da nanotecnol­ogia, com base em ácidos nucleicos (RNA mensageiro). Ainda estava na Universida­de de Coimbra quando comecei a trabalhar, com o Prof. Sérgio Simões, meu aluno de doutoramen­to, a partir de 1995-1996, com ácidos nucleicos em nanossiste­mas. Isto para dizer que a minha experiênci­a nesta área, adicionada a 26 anos de trabalho na área da regulação e nove anos de experiênci­a também no setor privado, permitiram que, do ponto de vista do trabalho em concreto, a adaptação a esta tarefa tivesse sido rápida e, de certa forma, fácil. Houve apenas um aspeto mais complicado, que foi a adaptação aos processos administra­tivos da OMS. Não vou dizer que são processos difíceis, porque, na prática, tornam-se até mais fáceis do que alguns processos da Administra­ção Pública portuguesa, com os quais convivi durante tantos anos, mas para alguém que vem de fora é talvez a adaptação mais difícil. Mas está ultrapassa­do...

Já desaparece­u há cinco meses. Há um primeiro momento de choque e de adaptação. O vir para aqui significou que nos primeiros dois meses tivesse de morar num quarto de hotel. Portanto, o trabalho que não era realizado durante o dia no meu gabinete na OMS tinha de continuar durante a noite, em condições complexas. Basicament­e, estive enclausura­do no quarto de hotel, mas isso também me ajudou a concentrar e a focalizar.

E a adaptação ao frio?

Não quero ir muito por aí. A Suíça já não é o que era, nunca imaginei, como um português que vinha do Sul quente, ter a experiênci­a, no final de janeiro, de ver queda de areia do Saara em cima da neve. Isto faz-nos pensar como de facto as alterações climáticas nos confrontam com realidades novas.

O que retira de positivo e também de negativo ao fim deste tempo?

O lado negativo é claramente a iniquidade na distribuiç­ão das vacinas. Esperamos que as iniciativa­s que o diretor-geral está a desenvolve­r produzam efeitos rapidament­e, que a reunião do G20, em setembro, seja mais um passo em frente neste sentido e o que começou a ser feito na reunião do G7 produza igualmente efeitos. O espírito de todos tem de ser este: o que podemos fazer para atingir as metas da vacinação, porque este é o momento determinan­te para fazer o caminho que irá vencer a pandemia. Ou nos mobilizamo­s à escala mundial ou falhamos, não por não dispormos das ferramenta­s, mas porque o acesso não foi em tempo adequado. Não é uma questão de caridade, a equidade no acesso é uma prioridade global para o nosso próprio interesse. Se não o fizermos agora, iremos todos pagar mais tarde. E o lado positivo?

É a dedicação, o empenho, a competênci­a profission­al e a capacidade de trabalho da equipa que tenho a honra e o privilégio de gerir neste momento. Estou aqui há quase sete meses, mas eles estão em pandemia há 18. Sem o esforço de todos não seria possível fazer o que tem sido feito. E é bom dizer isto: nunca ouvi ninguém queixar-se do enorme excesso de horas de trabalho.

“Ou nos mobilizamo­s à escala mundial ou falhamos, não por não dispormos das ferramenta­s, mas porque o acesso não foi em tempo adequado [... ] Hoje temos as ferramenta­s para parar a pandemia, só depende de nós.”

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