“Este era o projeto que me faltava” MUDANÇA
Foi por vontade própria que se candidatou a um cargo de direção na OMS. A família apoiou-o, mas a adaptação foi relativamente fácil. E ao fim de seis meses diz que o balanço é positivo.
Vamos ao lado pessoal. O ir para um cargo na OMS era uma vontade sua, uma missão na sua carreira ou apareceu de forma inesperada?
O candidatar-me a um lugar numa agência especializada como a OMS foi algo que partiu de uma vontade própria. Ao contrário de outras posições para as quais somos designados por convite, neste caso tive de passar por provas de seleção, portanto houve uma vontade pessoal para realizar o trabalho que estou a fazer. Explicar como cheguei a esta vontade seria uma longa história, mas, para simplificar, posso dizer que ao fim de 36 anos de carreira académica e há 26 a trabalhar diretamente com o sistema regulamentar dos medicamentos, este era, talvez, o projeto que me faltava. Portanto, foi uma reflexão pessoal, e obviamente com a família, que me levou à candidatura a um lugar de direção na OMS. E foi fácil?
Não. São candidaturas com vários passos e muito competitivas. Para lhe dar um horizonte temporal do processo, a minha candidatura foi submetida em fevereiro de 2020 e a decisão comunicada a 27 de novembro. No dia 11 de setembro, entrei para uma short list. Recordo-me da data porque no dia em que recebi o e-mail a informar-me de que tinha entrado nesta short list estava a entrar para uma cerimónia oficial na Faculdade de Farmácia. Era a tomada de posse da nova diretora da Faculdade, cuja eleição tinha sido eu, como presidente do Conselho de Escola, a supervisionar.
Foi um abanão?
Acho que do ponto de vista pessoal abanaria qualquer pessoa. Ia falar sobre o futuro da faculdade, do trabalho a realizar no quadro de um plano estratégico a cinco anos, e tinha acabado de saber que estava numa lista de nomes para ocupar o cargo a que me candidatei. Depois, foram dois meses de várias entrevistas, com abordagens diferentes, porque é natural que a avaliação da pessoa que vai ocupar um cargo destes passe por etapas diferentes, que foquem aspetos de gestão, de natureza técnica e de capacidade de recrutamento de financiamento.
O que sentiu quando soube da decisão. Também foi por e-mail?
Não. Foi através de um telefonema pessoal do diretor-geral da OMS, porque ele faz questão de ser o primeiro a dar a informação. É um estilo próprio do Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus em relação ao recrutamento de pessoal para cargos na sua equipa. Tinha falado com ele na véspera, para uma última entrevista, e ele disse-me que a decisão seria comunicada em 48 horas. Quando recebi o seu telefonema ao fim de 24 horas, fui apanhado de surpresa, pois sempre pensei que usasse as 48 horas para comunicar a decisão.
Como é que a família reagiu?
A família estava preparada de alguma forma, porque sem o apoio dela seria impossível fazer isto. Podemos planear alguns aspetos, mas há sempre obstáculos ou dificuldades que surgem e que colocam desafios à organização familiar e só é possível ultrapassá-los quando a decisão é assumida em termos familiares, e não individualmente.
Como foi passar da faculdade para o gabinete da OMS?
O tempo de adaptação ao trabalho foi rigorosamente zero. No primeiro e no segundo dias já estava a participar em reuniões. Três semanas depois estava a coordenar reuniões com os parceiros que nos providenciam os meios para realizar o trabalho necessário. Isto é importante explicar, porque é algo que provavelmente o cidadão em geral desconhece. A OMS não é só a sede em Genebra, temos seis escritórios regionais sediados em Washington, Copenhaga, Cairo, Brazzaville, Manila e Nova Deli, e escritórios em cada um dos Estados-membros. O estar em Genebra facilita a comunicação com as outras regiões, mas significa que podemos ter reuniões a qualquer hora do dia ou da noite na Suíça. A OMS funciona 24 horas por dia nos sete dias da semana.
Mas foi uma transição fácil?
Foi uma transição relativamente fácil. Em primeiro lugar, porque tenho um extraordinário grupo de coordenação. E aqui tenho de referir o apoio e a liderança da minha coordenadora direta, a Dr.ª Mariângela Simão, médica brasileira, com grande experiência nas Nações Unidas, onde esteve sete anos na ONUSIDA, e mais quatro já na OMS, como assistent director general, bem como a liderança do diretor-geral, o Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, já que a sua capacidade de liderança e motivação faz com que haja um grupo coordenador que funciona muito bem e com grande entrosamento. Em segundo lugar, diria que teve a ver com a minha experiência profissional – sou farmacêutico, doutorado na área da tecnologia farmacêutica, a trabalhar desde 1986 na área da nanomedicina e nanomedicamentos. E o momento que vivemos é particularmente interessante porque duas das vacinas que avançaram de imediato contra a covid-19 eram da área da nanotecnologia, com base em ácidos nucleicos (RNA mensageiro). Ainda estava na Universidade de Coimbra quando comecei a trabalhar, com o Prof. Sérgio Simões, meu aluno de doutoramento, a partir de 1995-1996, com ácidos nucleicos em nanossistemas. Isto para dizer que a minha experiência nesta área, adicionada a 26 anos de trabalho na área da regulação e nove anos de experiência também no setor privado, permitiram que, do ponto de vista do trabalho em concreto, a adaptação a esta tarefa tivesse sido rápida e, de certa forma, fácil. Houve apenas um aspeto mais complicado, que foi a adaptação aos processos administrativos da OMS. Não vou dizer que são processos difíceis, porque, na prática, tornam-se até mais fáceis do que alguns processos da Administração Pública portuguesa, com os quais convivi durante tantos anos, mas para alguém que vem de fora é talvez a adaptação mais difícil. Mas está ultrapassado...
Já desapareceu há cinco meses. Há um primeiro momento de choque e de adaptação. O vir para aqui significou que nos primeiros dois meses tivesse de morar num quarto de hotel. Portanto, o trabalho que não era realizado durante o dia no meu gabinete na OMS tinha de continuar durante a noite, em condições complexas. Basicamente, estive enclausurado no quarto de hotel, mas isso também me ajudou a concentrar e a focalizar.
E a adaptação ao frio?
Não quero ir muito por aí. A Suíça já não é o que era, nunca imaginei, como um português que vinha do Sul quente, ter a experiência, no final de janeiro, de ver queda de areia do Saara em cima da neve. Isto faz-nos pensar como de facto as alterações climáticas nos confrontam com realidades novas.
O que retira de positivo e também de negativo ao fim deste tempo?
O lado negativo é claramente a iniquidade na distribuição das vacinas. Esperamos que as iniciativas que o diretor-geral está a desenvolver produzam efeitos rapidamente, que a reunião do G20, em setembro, seja mais um passo em frente neste sentido e o que começou a ser feito na reunião do G7 produza igualmente efeitos. O espírito de todos tem de ser este: o que podemos fazer para atingir as metas da vacinação, porque este é o momento determinante para fazer o caminho que irá vencer a pandemia. Ou nos mobilizamos à escala mundial ou falhamos, não por não dispormos das ferramentas, mas porque o acesso não foi em tempo adequado. Não é uma questão de caridade, a equidade no acesso é uma prioridade global para o nosso próprio interesse. Se não o fizermos agora, iremos todos pagar mais tarde. E o lado positivo?
É a dedicação, o empenho, a competência profissional e a capacidade de trabalho da equipa que tenho a honra e o privilégio de gerir neste momento. Estou aqui há quase sete meses, mas eles estão em pandemia há 18. Sem o esforço de todos não seria possível fazer o que tem sido feito. E é bom dizer isto: nunca ouvi ninguém queixar-se do enorme excesso de horas de trabalho.
“Ou nos mobilizamos à escala mundial ou falhamos, não por não dispormos das ferramentas, mas porque o acesso não foi em tempo adequado [... ] Hoje temos as ferramentas para parar a pandemia, só depende de nós.”