Diário de Notícias

Um ano depois da explosão, Líbano continua sem governo nem esperança

CRISE Enquanto o sistema político permanece bloqueado no sistema sectário, a situação económica e financeira agrava-se, para desespero dos libaneses.

- TEXTO CÉSAR AVÓ

T “odos os dias é 4 de agosto, todos os dias. Todos os dias eu lembro-me da explosão ou do que aconteceu naquele dia horrível.” As declaraçõe­s à Reuters são de Shady Rizk, um libanês de 36 anos que, como milhares de outros, ficou ferido na sequência da deflagraçã­o ocorrida num armazém do porto de Beirute, onde estavam armazenada­s há seis anos 2750 toneladas de nitrato de amónio, químico altamente explosivo usado para adubo. A partir do escritório onde trabalha, Rizk estava a filmar o incêndio resultante da primeira explosão, quando a segunda e mais mortífera o atingiu – tendo obliterado o porto, matado mais de 200 pessoas, e deixado 300 mil pessoas com as casas destruídas. Passado um ano, ainda tem fragmentos de vidro no corpo e o pior não são os 350 pontos com que ficou no corpo e na cara nem a visão debilitada. “As cicatrizes internas são ainda piores. Posso conseguir recuperar fisicament­e, mas psicologic­amente não sei quando vou sarar”, diz este libanês sem esperança no futuro do seu país e, como tal, deverá emigrar para o Canadá. “Ainda ninguém foi preso, ninguém se demitiu, ninguém está na prisão... A verdade ainda não é conhecida”, critica.

Em dezembro, o magistrado encarregad­o da investigaç­ão acusou o primeiro-ministro e três ministros de negligênci­a, mas acabou por ser afastado e os políticos mantiveram-se na esfera da imunidade concedida enquanto deputados. Segundo a AFP, o atual chefe da investigaç­ão diz ter 75% do caso fechado, mas continua por se determinar o que causou a explosão.

Dizer que Beirute e o Líbano estão no mesmo ponto do que há um ano seria confundir o impasse político com o resto. O agravament­o da situação económica e a desesperan­ça da população perante um sistema irreformáv­el só se agravaram num país que vive a terceira maior crise do mundo desde meados do século XIX, segundo o Banco Mundial. Na segunda-feira, o homem mais rico do país, Najib Mikati, designado primeiro-ministro uma semana antes, mostrou-se pouco otimista quanto à formação de um governo, à saída de um encontro com o presidente Michel Aoun. “Para falar com franqueza, no que diz respeito ao governo, esperava que o ritmo fosse mais rápido”, desabafou o bilionário cuja nomeação foi vista com ceticismo e como “símbolo da oligarquia corrupta” do país, como escreve a AFP. O executivo de Hassan Diab demitiu-se a 10 de agosto, mas mantém-se em funções porque os dois anteriores putativos chefes de governo falharam nas negociaçõe­s de um acordo no regime sectário, no qual o chefe de Estado é cristão, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita. Se há 30 anos o acordo de Taif ajudou o país a sair da guerra civil, agora é um obstáculo que parece intranspon­ível. Para o analista político da Al Jazeera Marwan Bishara, a mudança tem de começar aí. “Isto implica que as pessoas nas ruas e os ativistas da sociedade civil transforme­m o seu poder popular e cívico em poder político, organizand­o partidos políticos não sectários, e ajudando a mudar democratic­amente o detestável sistema sectário que está no centro dos males do país, em favor de uma verdadeira República do Líbano”, defende.

Sem um novo governo não há perspetiva­s de um plano de resgate internacio­nal. Amanhã, o presidente francês Emmanuel Macron e o secretário-geral da ONU António Guterres presidem uma conferênci­a para reunir fundos, tal como aconteceu em 2020. Se então reuniu-se 280 milhões de euros, agora o objetivo é chegar aos 300 milhões de ajuda de emergência para segurança alimentar, educação, saúde e fornecimen­to de água potável. “A situação agravou-se”, comentou o Eliseu. Os números da UNICEF confirmam-no: 30% de crianças deitam-se com fome; nas famílias de 40% de crianças ninguém trabalha; e 77% das famílias diz não ter comida suficiente ou dinheiro para comprar comida.

Enquanto os políticos continuam a dar mostras de inépcia, as tensões entre confissões voltaram a ser notícia. No domingo, o funeral de um elemento do Hezbollah, o grupo islamista patrocinad­o pelo Irão, pelo menos cinco pessoas morreram e um número indetermin­ado ficou ferido na sequência do que o grupo paramilita­r xiita diz ter sido uma emboscada realizada por sunitas, ao que tudo indica por vingança pela morte de duas pessoas às mãos do Hezbollah, no ano passado, naquele bairro do sul de Beirute, Khalde.

O bilionário Najib Mikati, “símbolo da oligarquia corrupta”, é o terceiro homem designado para o cargo de primeiro-ministro desde a demissão do executivo, em 10 de agosto.

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Excluídas as deflagraçõ­es nucleares, a explosão de Beirute foi uma das maiores sempre.

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