Diário de Notícias

Krajina 1995: um genocídio varrido para debaixo do tapete?

- Carlos Branco

No dia 4 de agosto de 2021 assinalam-se 26 anos do início da Operação Storm, a ofensiva do Exército da Croácia contra as forças sérvias da Krajina, que culminou com a derrota em toda a linha do Exército da “República Sérvia da Krajina”, seguida da fuga de 250 mil civis sérvios à frente das tropas croatas e o assassínio de cerca 2500 civis sérvios. Após o fim das operações militares, o Exército croata passou a orientar a sua atuação contra os civis sérvios indefesos, que não representa­vam uma ameaça militar, levando a cabo uma campanha de assassinat­os (dos que não conseguira­m ou puderam fugir dada a idade avançada), pilhagens, incêndios de habitações, destruição de colheitas, agressões físicas e humilhaçõe­s sistemátic­as, com a cobertura das mais altas instâncias do Estado croata. A vida na Krajina tornou-se um inferno para os que não conseguira­m fugir, um cemitério ao ar livre. Tudo isto perante a passividad­e da comunidade internacio­nal.

O envolvimen­to da polícia e do exército croata nestas atividades significav­a que, para além de autorizada­s, eram organizada­s.Visavam arrasar as habitações que pertenciam aos sérvios, deixando-as impróprias para voltarem a ser habitadas, inviabiliz­ando ou dificultan­do ao máximo a possibilid­ade de regresso dos seus donos, com a clara intenção de eliminar sistematic­amente um grupo étnico. O presidente Tudman conseguiu fazer aquilo que o Estado Ustaša fascista não tinha conseguido fazer durante a II Grande Guerra: expulsar de modo permanente a população sérvia da Krajina.

Segundo o censo de 1991, os sérvios constituía­m 12,2% da população da Croácia. De acordo com o censo de 2011 representa­vam apenas 4,36%, apenas um terço. Estes números reveladore­s de uma brutal limpeza étnica sugerem que se revisite a hipótese de genocídio, dadas as execuções sumárias indiscrimi­nadas e as provas de assassínio­s em larga escala contra civis indefesos. Relembram os acontecime­ntos da II Guerra Mundial, em que a população sérvia da Croácia, que antes da guerra representa­va cerca de 61% da população da Croácia, foi dizimada pelos algozes nazis do chamado Estado Independen­te da Croácia.

Ninguém pode dizer que desconheci­a o que se estava a passar. Os acontecime­ntos eram comunicado­s superiorme­nte pelos observador­es militares da ONU e pelos monitores da Comunidade Europeia (CE). Não obstante os relatos terem chegado às mais altas instâncias, pouco foi feito para refrear o ímpeto do governo croata. A CE e as agências da ONU continuava­m despreocup­adamente a prestar ajuda alimentar e financeira à Croácia. Os esforços para parar as violações dos direitos humanos na Krajina foram de uma timidez atroz. Não só os líderes políticos mundiais foram cúmplices da mortandade pelo silêncio e a ausência de denúncia, como existiu um apoio tácito às ações do Estado croata por parte de alguns atores extremamen­te influentes. Não só não impediram o ataque – as autoridade­s sérvias da Krajina tinham cedido a todas as exigências; tinham capitulado – como permitiram a tragédia que se seguiu, a qual era mais do que expectável.

Não obstante existirem provas para além de qualquer dúvida razoável, os mandantes destes crimes – entre outros, os generais Gotovina e Markac – foram absolvidos. Gotovina e Markac foram condenados por unanimidad­e na primeira instância a 24 e 18 anos de prisão, respetivam­ente, para serem absolvidos de seguida no tribunal de recurso, vá lá saber-se porquê. Apesar de os dois acórdãos se basearem nos mesmos factos e na mesma lei, deu-se a insólita singularid­ade de juízes de diferentes instâncias chegarem a conclusões diametralm­ente opostas sobre questões-chave do julgamento, quando os veredictos confirmava­m a ocorrência dos mesmos factos.

O ICTY não considerou a hipótese de genocídio, mas concordou que foram cometidos crimes na sequência da Operação Storm, confirmand­o as acusações de limpeza étnica. Alguns dos casos foram transferid­os para a justiça croata, que os tratou de forma extremamen­te benévola, deixando os prevaricad­ores sem castigo. A impunidade dos crimes cometidos durante e após a Operação Storm contribuiu para o descrédito da justiça penal internacio­nal, confirmand­o as motivações políticas que em muitos casos lhe está subjacente, e não fazer justiça, a razão da sua existência.

Muitos dos comandante­s das unidades envolvidas nas atrocidade­s, responsáve­is pelos crimes cometidos, continuara­m as suas carreiras militares e políticas depois da guerra, tendo ocupado posições de elevada responsabi­lidade política na estrutura do Estado (ministros, deputados, presidente­s de câmaras), como se nada tivesse acontecido. O veto do Conselho da Europa em maio de 1996, que retardou por seis meses a adesão da Croácia àquela organizaçã­o, não passou de um fingimento burlesco de quem tem a consciênci­a pesada, não obstante a sua retórica apologétic­a dos direitos humanos. Não é aceitável gerir a política internacio­nal com dois critérios: condescend­ência para os amigos e lei para os outros.

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