As leituras de verão
Todos os verões da minha vida começavam com a escolha dos livros para levar para férias. Mantenho essa tradição, mesmo agora que menos necessário se tornou separar os livros do verão de todos os livros em leitura ou releitura que alastram pela minha casa, sem conseguir encher inteiramente as horas. Os ritmos de leitura mudaram, os tempos tornaram-se mais curtos e sincopados, pela influência do fluxo incessante da comunicação digital que invade os nossos ecrãs e apela aos nossos reflexos, reduzindo a nossa atenção.
Proust, num longuíssimo prefácio que escreveu a um livro de John Ruskin, descreve essa inteira possessão pelo livro, que nos enche inteiramente os dias das férias e que nos deixa com um sentimento de solidão quando o acabamos. Líamos sem verdadeiramente querer interromper a leitura, mesmo se a nossa leitura conhecia saltos, passagens descritivas que deixávamos de lado para seguir sem parar a progressão do enredo, diálogos que encurtávamos na progressão da nossa descoberta. Não devemos ler assim, mas todos o fizemos. Bela descrição de Tormes, que nós saltávamos sem consideração para continuar a acompanhar a subida de Jacinto e de Zé Fernandes... Todos um dia lemos assim, mesmo se o não devíamos fazer.
Proust confessa-nos esse pecado juvenil de má leitura ou leitura em diagonal e legitima a nossa confissão tardia de que todos saltámos alguma coisa nas nossas leituras, a narrativa das batalhas na Guerra e Paz, a descrição das montanhas em A Cidade e as Serras ou os pormenores genealógicos nas novelas de Camilo.
Já Harold Bloom nos ensinara em tempos o papel da desleitura naquilo que os poetas fazem com as obras dos poetas que os precederam (A Map of Misreading, 1975). Um livro recente visa justificar a má leitura. Este livro (Maxime Decout, Éloge du Mauvais Lecteur, 2021), aborda todos os tratos de polé que as nossas mais criativas más leituras podem infligir às obras de ficção, recordando-nos que as nossas leituras nunca são as do leitor modelo, tal como é postulado pela teoria literária, são antes as que arrancam da nossa subjetividade, dos nossos interesses, das nossas paixões. Como Barthes nos pergunta: Nunca vos aconteceu, ao ler um livro, parar incessantemente no meio da leitura, não por desinteresse, mas ao contrário por afluxo de ideias, de excitações, de associações? Numa palavra, nunca vos aconteceu ler levantando a cabeça?
Quando escolho longamente entre os meus livros aqueles que vou levar para férias, estou a escolher conversas, companhias, estímulos, pretextos para reflexões ou para versos. Eles irão ocupar parte dos meus dias, não como matéria de estudo ou de preparação de um trabalho, mas como ocasião para eu muitas vezes levantar a cabeça, como dizia Barthes, e medir comigo mesmo e com as mais inesperadas recordações tudo o que a leitura veio despertar em mim.
E depois, ao voltar, olhamos a diferença entre o que lemos e o que deixámos por ler, não com a tristeza de termos falhado, mas com a alegria de levar para casa connosco ainda mais livros para ler.
PS – Ao acabar este texto, recebo a notícia da morte de Pedro Tamen. O grande poeta que ele era pode ter procedido ao misreading para se confrontar com a poesia dos outros; mas o extraordinário tradutor que ele foi representa afinal o mais que perfeito leitor.