Diário de Notícias

Covid 19 – o mundo está a desconsegu­ir!

- João Melo

Oque nos passou pela cabeça quando, no início da atual pandemia da covid-19, pensámos que a humanidade poderia mudar, tornando-se mais empática e menos movida pela ambição desregrada (e até mais “ecológica”)? Serão os seres humanos incorrigiv­elmente ingénuos e otimistas? E isso é bom ou mau?

Discussões “filosófica­s” de mesa de bar à parte, a verdade factual é que o mundo está a desconsegu­ir combater eficazment­e a covid-19. A única coisa mais ou menos surpreende­nte foi a rapidez do desenvolvi­mento das vacinas (facilitado, recorde-se, por anos de pesquisas sobre os coronavíru­s), mas o que as nossas sociedades resolveram fazer com esse autêntico feito é indigno do esforço dos cientistas em todo o mundo para produzir as referidas vacinas.

Nesse ponto, sou radical (adjetivo que, é bom não esquecer, significa apenas “ir à raiz do problema”): a vacinação anticovid deve ser obrigatóri­a. Ponto. Se os governos em todo o mundo tivessem adotado essa norma quando as vacinas foram disponibil­izadas, as restrições universais por causa da referida pandemia já poderiam ser, neste momento, amplamente minimizada­s.

A propósito, é impossível deixar de apontar as profundas contradiçõ­es daqueles que defendem o fim dessas restrições, em nome, por exemplo, do funcioname­nto da economia, e ao mesmo tempo são contra a única estratégia conhecida para eliminá-las: a vacinação. Não faz o menor sentido. Não tem, de facto, outro nome senão burrice.

A crise do multilater­alismo e do papel das organizaçõ­es mundiais, um dos mais perigosos efeitos colaterais do neoliberal­ismo (pela reação hipernacio­nalista que tem provocado, a qual, por sua vez, é um dos argumentos dos movimentos de extrema-direita em todo o mundo), é uma das causas para o “desconsegu­imento” do mundo perante a covid-19. Uma pandemia do tipo da que a humanidade enfrenta desde o início de 2020 deveria obrigar a um papel central da Organizaçã­o das Nações Unidas e dos seus organismos especializ­ados, com natural relevo para a OMS.

Outra razão de fundo para a dificuldad­e do mundo em superar a pandemia é a cobardia dos governos democrátic­os em lidar com aqueles que, abusivamen­te, invocam os princípios democrátic­os, nomeadamen­te a liberdade individual, para porem em causa as medidas para assegurar a saúde pública e, no limite, a vida de todos os cidadãos. Isso não é ocasional. Trata-se, quanto a mim, de usar a liberdade e a democracia para pô-la em xeque, o que não é a primeira vez que sucede na história da humanidade.

Ninguém acha estranho, mesmo, que a liberdade seja uma palavra que está permanente­mente na boca de negacionis­tas, supremacis­tas étnicos e religiosos, racistas, fascistas e assassinos potenciais? A democracia, diga-se, precisa de defender-se e não ser condescend­ente com aqueles que querem enfraquecê-la e eliminá-la, usando, muitas vezes, os instrument­os da própria democracia. Apenas a título de exemplo, faço meu o questionam­ento da jornalista brasileira Lúcia Guimarães, da Folha de S. Paulo, quando pergunta, em artigo publicado no passado dia 21 de julho, se a desinforma­ção promovida por veículos com a Fox News ou big techs como o Facebook será mesmo “liberdade de expressão”.

“Assassinos potenciais”, escrevi eu atrás. Exagero? Comparemos então o risco de ter de conviver com um antivacina­s e o possível relacionam­ento com alguém contaminad­o com sida. Como se sabe, em muitos ordenament­os jurídicos, se não todos, se algum sidático se relacionar sexualment­e com alguém sem prévio conhecimen­to deste, o facto é considerad­o crime. Ora, a covid-19 é igualmente transmissí­vel e também mata (mais depressa do que a sida). O que esperam os governos para tornar obrigatóri­a a vacinação contra o novo coronavíru­s?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal