O estranho caso do historiador sem história
Não há qualquer dúvida – eu não tenho – de que Pacheco Pereira é um dos mais interessantes comentadores portugueses. Inteligente, cáustico, lido, muitas vezes o que escreve demonstra capacidade de análise que vai para além da superfície e nos suscita reflexão, sendo até possível achar (já achei) um certo encanto no tom de enfado, quase neurasténico, com que se apresta a explicar o mundo aos menos afortunados no campo cerebral – nós todos, naturalmente.
O que escreve deve porém ser lido com precaução: é bem possível que tenha já defendido o absoluto contrário, com o mesmíssimo tom de impaciente superioridade. E sem jamais explicar a, digamos, evolução. Porque, claro, mudar de opinião é normal e até desejável em determinados assuntos, mas convém explicar porquê – sob pena de se poder concluir que tais mudanças são fruto de estratégias e oportunismos (poder dar jeito num determinado contexto ter outros aliados e alvos, tendo mudado de inimigo) e não de uma reflexão honesta, fruto de amadurecimento e/ou alterações de circunstâncias.
Vejamos o caso de Otelo. Pacheco Pereira, numa intervenção televisiva e num texto na Sábado, alertou para a “tribalização” que a sua morte iria suscitar (“Nos dias que atravessamos, de reducionismo da política à arregimentação tribal, Otelo terá o panegírico do herói e o vilipêndio do criminoso, e não vai haver capacidade para olhar para ele com distanciação”); na Circulatura do Quadrado, comparou Spínola e o estratega do 25 de Abril, vincando que o primeiro (também dirigente de um movimento terrorista, o MDLP, e ligado a uma tentativa de golpe de Estado que o levou a fugir do país) tivera direito a luto nacional e o segundo não. Não o vi defender preto no branco que Otelo, cujo papel de dirigente das FP25 reconhece, deveria ter essa honra, mas a ideia que fica é essa – as suas palavras “Com Spínola não haveria 25 de Abril, sem Otelo não haveria 25 de Abril” foram amplamente citadas por quem o preconizou.
Nada de problemático haveria nisso – podemos concordar ou discordar; podemos por exemplo achar que Spínola não deveria ter tido essa honra apesar de ter sido PR e que ter-se errado no seu caso não justifica repetir o erro (é o que penso)
– se o mesmíssimo Pacheco Pereira não se tivesse oposto à amnistia aprovada pelo parlamento em 1996 (curiosamente, no ano da morte de Spínola) de que Otelo, condenado pelo Supremo, em decisão nunca transitada em julgado, a 17 anos de prisão por terrorismo dos quais cumpriu cinco em preventiva, foi beneficiário.
Vale a pena revisitar a intervenção de Pacheco Pereira como deputado na discussão da amnistia. Nesta, vincava que a proposta dividia “profundamente os portugueses” e não tinha “qualquer papel de pacificação da sociedade portuguesa”; que justificá-la com a “dualidade fascismo/antifascismo” era “legitimar a actuação das FP-25 de Abril”, porque correspondia a “interpretá-la como um ato que pode ser hoje, em 1996, visto como politicamente legítimo, como um ato que pode ser inserido num comportamento antifascista e que, pelo reverso, pode ser comparado ao comportamento da PIDE.” A Otelo, elegia-o entre os responsáveis das FP como o mais imperdoável: “Há, pelo menos, uma pessoa que não merece a amnistia. Essa pessoa é a que, depois do que aconteceu, dando uma entrevista ao semanário Expresso e falando da morte de uma criança [o bebé de quatro meses morto em 1984 por uma bomba enquanto dormia no berço], disse que se tratava de um erro técnico! E este cinismo, este sim, não pode ser amnistiado!”
Cinco anos depois, em 2001, aquando do chamado “julgamento dos crimes de sangue” das FP25, no qual Otelo era mais uma vez arguido e no qual foi, como previsível no pós-amnistia, absolvido, o nosso político/comentador/historiador voltava à carga num brutal artigo no Público, intitulado A bofetada, verberando a “injustiça praticada pela justiça e pelo poder político no caso das FP-25 de Abril”, cuja ação definiu como “puro terrorismo político, crimes contra tudo o que são os fundamentos da democracia e dos direitos humanos”.
O “ar impante de Otelo e dos seus companheiros, os abraços esfuziantes à saída do tribunal, são uma bofetada para a esmagadora maioria dos portugueses”, afiançava, redobrando a sua fúria contra “o sorriso de Otelo (...), na ‘aisance’ criminosa dos que não se arrependeram, mas que fazem hoje a sua vidinha de antigos combatentes, como se nada fosse (...), sem uma palavra de distância, sem entregarem uma arma ou explosivo, sem pagarem um tostão às vítimas, prontos para o ‘talk show’, com esta arrogância que nos fere a todos”. Para concluir: “Também aqui os homens de caráter perderam e os que não o têm ganharam.”
É possível, aos 52 anos, Pacheco Pereira achar isto tudo de Otelo – que não tinha caráter, que era um criminoso impenitente e desalmado, que a sua amnistia e absolvição não deviam ter acontecido, ou seja, que deveria ter passado 20 ou mais anos na prisão, que o resultado dos dois processos das FP25 era uma “violência” introduzida no “tecido psicológico coletivo”, um “rio de ressentimento” que havia de “vir ao de cima” – e aos 72 pedir “distanciação” e até dar a entender que ele devia ser celebrado como grande da pátria?
É possível, porque aconteceu. Convinha era assumir. Justificar o facto de, quando teve o poder de decidir com o seu voto, ter votado Otelo ao opróbrio. Ou admitir que “estava enganado”, “enraivecido”, “era a posição do meu partido”, “foi a minha fase caceteira”, “via o mundo a preto e branco”, “era parvo” - qualquer coisa assim.
O que não faz sentido é arrogar-se a postura do filósofo historiador que sopesa contextos e despreza aquilo a que chama “tribos”, atribuindo aos outros aquilo que ele próprio fez – apor o “vilipêndio do criminoso” a Otelo. O que é patético, evidenciando um determinado tipo de caráter, é reagir, perante quem confronta o recoletor da Ephemera com recortes da sua história, como se o caluniassem.
Furibundo com o facto de no Twitter ao contrário do que se passou no universo das TV, no qual apareceu a comentar a morte de Otelo sem ninguém lhe ter feito uma perguntinha que fosse sobre o seu próprio historial no que a Otelo respeita (não sabiam ou, como ele, acham que isso agora não interessa nada?) - se ter recordado o seu passado, o historiador não teve a humildade de se colocar na história como peão que cada um de nós é, examinar-se como produto do seu tempo e contexto, fazer errata do seu percurso. Entrou, ele que foi dos primeiros a entusiasmar-se com os blogues e o mundo da internet, na imprecação contra “as redes”, queixando-se de “ódios pessoais e políticos”, “ajustes de contas” e “disseminações de calúnias” – isto sem nada concretizar, que apresentar factos só se exige aos outros e dizer o que tanto o irritou não dava jeito nenhum.
Num texto ironicamente intitulado O mundo a preto e branco, Pacheco, que um dia, há muitos muitos anos, quando eu ainda o cria pessoa séria e lhe dirigia a palavra, me disse “eu leio tudo”, retrata-se na demonstração de que passeia clandestino nesse universo que relata tanto desprezar, anotando elogios e críticas e acalentando os ódios pessoais – baixinhos, baixinhos - que imputa aos outros. O monocolorismo que descreve ser o Twitter serve-lhe afinal para descrever o Twitter - como se o Twitter, como o mundo, porque como o mundo, os jornais, as TV, os blogues, é feito de pessoas, não tivesse de tudo.
“Olhem para mim e vejam como estou indignado”, é o resumo do Twitter por Pacheco Pereira num texto que se resume a isso mesmo: a sua indignação por haver – como se atrevem, como me atrevo? – quem lhe denuncie o bluff.
A sua virtude preferida?
Sem coragem não somos muito.
A qualidade que mais aprecia num homem? Frontalidade, verdade e justiça
A qualidade que mais aprecia numa mulher? Frontalidade, verdade e justiça
O que aprecia mais nos seus amigos? O dar sem esperar receber.
O seu principal defeito? Paranoia com rigor e detalhe.
A sua ocupação preferida? Fotografar e observar.
Qual é a sua ideia de “felicidade perfeita”? A ideia de que existe, sim, mas por breves momentos.
Um desgosto?
Alguns. Uns de amor ao longo da vida, outros simplesmente entre pessoas. Às vezes algumas falhas comigo mesma. Outras, simples mal-entendidos. Mas escolho o desgosto de não ter asas físicas para voar. Mesmo voar. Gostava dessa liberdade. Continuo à procura disso. Ainda assim consigo voar altos voos sem asas.
O que é que gostaria de ser?
Gostaria de ser recordada com amor e com todo o respeito do meu país e do mundo.
Em que país gostaria de viver?
A nossa casa é o mundo. Nunca nos devemos esquecer disso.
A cor preferida?
Azul com tons verdes. Faz-me imaginar os oceanos sem poluição e as zonas costeiras com mangais.
A flor de que gosta?
Gosto de flores mas gosto mais ainda de dentes-de-leão. Eles crescem na margem das estradas, nada nem ninguém faz alguma coisa por eles. E são eles que ainda concretizam os desejos a quem sopra e passa.
O pássaro que prefere?
Todos os que cantam. Todos os que voam.
O autor preferido em prosa?
Gosto deVirginiaWoolf. Ultimamente interessa-me JoséTolentino Mendonça. Pela sabedoria, pela simplicidade.
Poetas preferidos?
Tudo de Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Não ligo nada. Gosto mais de heróis de verdade.
Heroínas favoritas na ficção?
Aqui diria o mesmo, mas acho muita graça à adulta frontalidade e ironia da pequena Mafalda [Quino]. Gostava que ela existisse mesmo.
Nelson Mandela, Aristides de Sousa Mendes, SimoneVeil, Anne Frank, Simone de Beauvoir.