Diário de Notícias

Lalibela, o património da humanidade tomado pelos rebeldes

ETIÓPIA Forças do Tigré expandiram-se para sul e oeste para se libertarem do bloqueio, tendo capturado símbolo da igreja ortodoxa.

- TEXTO CÉSAR AVÓ

Atomada pelos rebeldes da Frente de Libertação do Povo de Tigré ( TPLF) da localidade de Lalibela, fora da região de Tigré, na quinta-feira, lança nova luz sobre um conflito que no dia anterior entrou no décimo mês entre as forças governamen­tais e a TPLF e sobre o qual não se antevê um fim. Na sexta-feira os rebeldes explicaram que não tencionam retirar-se das regiões vizinhas de Afar e Amara (na qual Lalibela se situa) enquanto o bloqueio ao Tigré não for levantado. “Nada nesse sentido acontecerá, a menos que o bloqueio seja levantado”, disse o porta-voz da TPLF, Getachew Reda, referindo-se ao acesso humanitári­o à sua região. Na quinta-feira, a tomada da cidade amara de Lalibela, conhecida pelas igrejas talhadas na rocha e classifica­da como património mundial da humanidade pela Unesco desde 1978, deu-se sem um único disparo. As forças de segurança locais já haviam abandonado o terreno quando os rebeldes tigrínios entraram. “Eles estavam a dançar e brincar na praça da cidade”, disse um morador à AFP.

“Estamos sitiados. Estamos sob bloqueio”, disse Getachew, tendo justificad­o que a tomada da cidade tinha como objetivo proteger as estradas no norte de Amara e impedir a concentraç­ão de tropas governamen­tais de forma a cumprir o plano de recuperar o sul e oeste do Tigré, ocupados pela etnia amara. Os líderes de Amara rejeitaram os apelos dos EUA e de outras potências para saírem do Tigré, alegando que historicam­ente se encontram sob o controlo dos Amara. “Vamos certificar-nos de que não constitui um problema grave qualquer coisa que Abiy venha a usar para manter o seu bloqueio sobre o nosso povo”, disse o porta-voz sobre o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed.

O porta-voz da diplomacia norte-americana, Ned Price, instou os rebeldes do Tigré para se retirarem das regiões vizinhas, bem como apelou para se iniciarem conversaçõ­es “para negociar uma trégua imediata e sem pré-condições”. Os Estados Unidos pediram também aos rebeldes para “protegerem o património cultural”, destacando que Lalibela é “um legado da civilizaçã­o etíope”.

“Sabemos o que significa proteger os sítios históricos”, respondeu o porta-voz da TPLF à preocupaçã­o demonstrad­a pelos EUA. “Lalibela é também nosso património.” Vários locais classifica­dos como património em Tigré foram significat­ivamente danificado­s durante o conflito, nomeadamen­te mosteiros e outros locais de culto, embora os tigrínios tenham atribuído essa destruição às forças pró-governamen­tais.

Por parte do governo de Adis Abeba recriminou-se a TPLF. “Espero que, nestas circunstân­cias, a comunidade internacio­nal comece a despertar e a ver esta organizaçã­o como ela é: uma organizaçã­o terrorista que se apropriou do bem-estar do povo de Tigré como um meio para os seus objetivos perversos”, afirmou em conferênci­a de imprensa Billene Seyoum, porta-voz do primeiro-ministro etíope. A porta-voz diz que há mais de 300 mil pessoas deslocadas devido aos recentes combates em Amara e Afar. O governo tem acusado os líderes ocidentais de ignorarem os crimes cometidos pela TPLF, que foi o principal partido nacional durante três décadas e até 2018, quando o primeiro-ministro Abiy Ahmed chegou ao poder. A sua aproximaçã­o à vizinha Eritreia valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz no ano seguinte, uma distinção que veio a revelar-se precipitad­a. Em novembro de 2020, após meses de tensões crescentes, Abiy Ahmed enviou o exército para Mekele e desalojou do poder as autoridade­s regionais, da TPLF. Os combates continuara­m desde então e no final de junho, rebeldes reconquist­aram a maior parte da região, incluindo a capital.

O conflito agravou a crise humana e mergulhou 400 mil habitantes do Tigré na fome, e deixa 1,8 milhões na iminência de também terem o mesmo destino, diz a ONU. A mesma organizaçã­o estima que mais de 90% da população, ou 5,2 milhões de pessoas, vivem dependente­s de ajuda externa. De visita à Etiópia nesta semana, Martin Griffiths, secretário-geral adjunto da ONU para os assuntos humani

O governo acusa a TPLF de ser uma organizaçã­o terrorista, e aquela diz que o Tigré está sitiado. Ajuda humanitári­a não chega a 400 mil pessoas com fome.

tários, criticou as acusações “perigosas” de parcialida­de feitas contra os trabalhado­res humanitári­os no Tigré, tendo 12 sido assassinad­os desde o início do conflito. Em julho, um funcionári­o do governo acusou algumas organizaçõ­es não governamen­tais de “armarem o outro lado”, uma referência à TPLF. No mesmo dia em que Griffiths defendeu a ação dos trabalhado­res humanitári­os, o governo de Adis Abeba proibiu a ação dos Médicos Sem Fronteiras e do Conselho Norueguês de Refugiados.

Também de visita à Etiópia, a diplomata norte-americana Samantha Power, que dirige a USAID, a organizaçã­o que mais ajuda concede àquele país (mil milhões de dólares por ano) desabafou: “Há tanta coisa que queremos fazer juntos, mas isto é um autogolo”, disse sobre a atitude do governo em relação aos grupos de ajuda humanitári­a, jornalista­s e países aliados. cesar.avo@dn.pt

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Rebeldes da Frente de Libertação do Povo de Tigré na capital da região, Mekele; à esquerda e no topo a Igreja de São Jorge, uma das 11 que fazem de Lalibela a “Nova Jerusalém”.
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