“A marca cultural que Portugal deixou no Oriente é imensa, mas não foi uma marca militar”
“A MARCA CULTURAL QUE PORTUGAL DEIXOU NO ORIENTE É IMENSA, MAS NÃO FOI UMA MARCA MILITAR”
A2 de outubro é possível visitar no Museu do Oriente, em Lisboa, a exposição Histórias de um Império. Coleção Távora Sequeira Pinto, com peças que mostram a principal marca que Portugal deixou no mundo: o diálogo de culturas. E o convidado deste brunch, o historiador NunoVassalo e Silva, faz questão de antes de nos sentarmos à mesa me guiar numa rápida visita à exposição, da qual é o comissário científico, para me mostrar exemplos dessas ligações que os portugueses por via do comércio conseguiram criar, neste caso na Ásia. Destaco um, a caixa ventó, tradicional no Japão para guardar o almoço, e que vemos numa versão do século XVII adaptada à Índia Mogol . O material é “madeira de teca policromada e envernizada, com ferragens de metal amarelo recortado e vazado”.
São mais de centena e meia de peças, a maioria oriunda da riquíssima Coleção Távora Sequeira Pinto, que deverá ter museu próprio no Porto em 2023. E se as origens destes tesouros artísticos são diversas, do Japão ao Sri Lanka, pergunto ao comissário da exposição se Goa sobressai. “Goa é o centro daquele mundo português na Ásia. Goa é a capital do Estado português da Índia. Há um certo momento em que este vai da costa oriental de África até ao Japão. Antes de Portugal lá chegar, Goa já era um grande polo comercial entre o norte e o sul da Índia. Com os portugueses, ganha uma dimensão global. Passa a estar ligada à Europa, através da rota do Cabo, também a Malaca e vamos avançando até à nau do trato, que chega a Nagasáqui. Temos todo um comércio das mais diversas mercadorias, e estamos a falar desde as especiarias até às indústrias artísticas como vemos aqui, que vêm para Portugal através de Goa. E o mercado de Goa é um mercado riquíssimo, uma segunda Lisboa no Oriente, uma plataforma. O mercado local também é importante, das famílias católicas, muitos brâmanes convertidos, todas as irmandades das igrejas de Goa e também de Damão, Diu e Cochim. Não esquecer que são grandes clientes de mobiliário, de objetos devocionais, e de tudo um pouco”, responde, com o entusiasmo que é natural em quem estuda esta matéria há décadas. Licenciado em História pela Universidade de Lisboa, NunoVassalo e Silva doutorou-se em Coimbra, com a tese “E muy rica prata fina,de bestiães bem lavrados: A ourivesaria entre Portugal e a Índia, do século XVI ao século XVIII”.
Estamos agora a beber um café no restaurante no quinto piso do Museu do Oriente. O espaço está fechado para remodelação, mas a Fundação Oriente teve a gentileza de autorizar o brunch minimalista, porque a vista sobre o Tejo não só é esplêndida, como aquela zona junto ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos tem muito que ver com a história familiar do convidado, neto do general Manuel AntónioVassalo e Silva, o último governador de Goa.
“Recordo perfeitamente a primeira vez que fui a Goa. Já foi um bocado tarde, em 1996. Foi também a primeira visita à Índia. Toda a minha vida tinha sonhado ir à Índia por causa dos meus avós. Aconteceu no âmbito das comemorações dos 500 anos da viagem de Vasco da Gama, concluída em 1498”, conta o historiador. Peço-lhe mais pormenores. “Devo dizer que quando cheguei a Goa senti-me mergulhado num turbilhão de ideias. E confrontei-me muito com as memórias dos meus avós. Sobretudo da minha avó, que descrevia mais Goa do que o meu avô. Contava as coisas que tinha visto, que fazia lá. E depois tive a oportunidade de ser sempre muito bem tratado, muito graças ao nome da família, identificado imediatamente. Vieram pessoas visitar-me ao hotel. Tive muito cuidado, porque eu não sou o meu avô [risos]. E descobri várias Goas, na altura, uma Goa em que o Portugal imaginado era o Portugal de outros tempos, de 1961, do Estado Novo. A imagem que tinham era a de um país muito organizado. As pessoas mais velhas falavam ainda português. E depois tive o privilégio de ter sido recebido no palácio do Cabo onde os meus avós residiram e que estava ainda com os móveis do tempo dos governadores portugueses. Até me falaram de umas peças do enxoval da minha avó que ficaram lá [risos]. É um palácio perto da praia, em Dona Paula. Era a residência oficial. Há também em Pangim o palácio do Hidalcão. Para se perceber porque os portugueses ficaram lá entre 1510 e 1961 é preciso ir ao litoral, para se ver como é uma enseada protegida e dali até velha Goa, rio acima, havia uma defesa imensa de baluartes. Isto foi muito emocional para mim.”
A invasão de Goa (Libertação, diz a Índia) decorreu entre 17 e 19 de dezembro de 1961. A ordem foi de Jawaharlal Nehru, primeiro-ministro e pai da independência arrancada 14 anos antes aos britânicos. Os franceses, entretanto, tinham desistido das possessões e só restava os enclaves portugueses, os mais antigos. Morreram 30 portugueses nos combates, mas se Salazar dava ordens para lutar até à morte, o governador preferiu a rendição, tal a desproporção de meios. Evitou-se um banho de sangue, decisão de um general, também enge
nheiro, que nos três anos de missão tinha apostado forte no desenvolvimento de Goa, tanto através de infraestruturas como promovendo o ensino do português.
“Fui como historiador, mas a condição de neto do governador sobrepôs-se um pouco de início. Tive a possibilidade de fazer um inventário de todas as peças de ourivesaria – eu estava a desenvolver a minha tese sobre a ourivesaria feita na Índia para o mercado português – e abriram-me todos os armários, sobretudo nas igrejas e algumas casas. E também trabalhei no arquivo histórico de Goa, que é extraordinário. Uma coisa que eu percebi das minhas viagens é que a Índia é um pouco como a Europa na diversidade. Temos a ideia de ser única, mas na verdade são muitos antigos reinos e principados, hoje estados, e não esquecer que Goa teve de se bater pela autonomia, para não ser incorporada noutro estado. Tem hoje uma identidade cultural muito forte e isso é uma mais-valia”, analisa o historiador.
Comento que para evitar a absorção pelo Marahashtra e pela língua marathi os goeses tiveram de adotar o inglês a par do concani, mas que recentemente o jornal O Heraldo, centenário mas que em 1983 trocou o português pelo inglês, passou a ter uma página dominical na língua de Camões.“Creio que o meu avô teria gostado. Ele continuou a receber O Heraldo até morrer em 1985, mas apesar de alguns setores nostálgicos, não achei que Goa vivesse voltada para o passado. Conheci criadores de arte contemporânea, uma geração a tentar com as tradições goesas criar uma nova linguagem. Já não vou a Goa há dez anos. Mas sinto que nós portugueses de visita temos de lavar da cabeça a sensação nostálgica que também é uma visão redutora de Goa. Goa tem um cosmopolitismo que marca a sua identidade”, diz.
Nuno Vassalo e Silva, de 60 anos, sublinha ter nascido seis meses antes da invasão. E havia em casa dos avós “algumas peças que já eram da família ligadas à Índia, outras que tinham trazido de Goa, mas o que se sentia era sobretudo a memória e a eterna gratidão que os meus avós tinham pelo povo de Goa, depois daquela crise grande e da reação de Salazar. Veja que em 1982 é feita uma subscrição em Goa para convidar o meu avô a visitar Goa. Tenho muito orgulho no meu avô, era um homem muito ético, muito humanista. Quando foi, toda a gente quis cumprimentá-lo na rua”.
O historiador diz que o avô quando era governador tinha a perceção de que estava a lutar contra o tempo, mas que em Portugal houve sempre a ilusão de que a invasão não aconteceria. Pergunto se um acordo com a Índia semelhante ao feito com a China para a devolução de Macau em 1999, com um período de transição de 50 anos que protegesse a língua, podia ter sido aplicado a Goa, onde sempre se falou muito mais o português. “Com o Estado Novo nunca. Pela arte podemos ver isso. A grande exposição que é feita em Londres, na Royal Academy em 1955, foi uma propaganda completa do regime e da presença das colónias portuguesas. Com aquele regime não era possível compromissos. Isto que se passou em Goa foi muito violento. Aliás, nós estamos aqui em Alcântara e recordo como os prisioneiros de guerra portugueses foram abandonados, porque Salazar recusava reconhecê-los. Chegaram a Lisboa de barco e quando desembarcaram aqui tinham soldados com as espingardas apontadas, embora baixas, quando eles desceram. Foi uma humilhação. Salazar gostava de dar esses exemplos. A guerra em África começara seis meses antes. Do ponto de vista humano, até cristão, foi uma vergonha. Ao Salazar de depois da Segunda Guerra Mundial não dou hipótese nenhuma. O que fez ao meu avô e aos soldados que estavam em Goa mostra muita mesquinhez e muita pequenez. Portugal tentou suspender a história. Perdeu com isso, e ainda hoje sofremos esse mal.”
Sofremos com certos erros do passado, alerta, pois, o historiador, prosseguindo o raciocínio: “Stefan Zweig no livro de memórias dele começa com uma frase que me deixou muito impressionado.‘Eu nasci num império.’ Eu também. Nasci em 1961. Só que hoje quando se fala muitas vezes do império estamos a falar de uma ideia que nem sequer correspondeu à realidade. E aquela tendência que temos muitas vezes de querer ignorar o hoje valorizando o passado é algo terrível. Acho que temos muito a tendência de pensar no tempo em que éramos grandes e por vezes isso evita que nos tornemos, não sei se grandes, mas certamente mais. Basearmos a nossa perceção do presente e do futuro numa falsa raiz histórica não é muito aconselhável. Mas também nem pensar em renegar a história. Nós criámos um império e devemos orgulhar-nos. Mas isso é uma mola para o desenvolvimento, não para ficarmos a contemplar o passado.”
O foco, salienta Nuno Vassalo e Silva, deve ser nas relações culturais. “A marca cultural que Portugal deixou no Oriente é imensa. Mas não foi uma marca política, não foi uma marca militar. Claro que nós fomos violentos, fomos injustos, mas a marca cultural perdura. Vamos ao Japão e são muitas as palavras portuguesas que foram absorvidas, vamos ao Sri Lanka, o antigo Ceilão, e tantas palavras portuguesas. Saímos de lá no século XVII e ainda há famílias com nomes portugueses. Isso quer dizer alguma coisa”, nota o historiador. Concordo, e lembro que o general que derrotou os separatistas tâmiles se chamava Sarath Fonseka.
“Portugal já antes dos Descobrimentos era um povo de contactos. Cruzaram-se aqui os povos do norte da Europa com os do sul da Europa. Fomos sempre um país de abertura, com uma capacidade de diálogo imensa. E chegámos aos pontos mais extremos do mundo, mas não é só a coroa portuguesa que chega, quem chega são também os comerciantes, que nos servem quase de embaixadores. Por isso, e agora voltando à exposição aqui no Museu do Oriente, não gosto de usar o termo indo-português ou sino-português, porque o que nós fizemos foi muito mais rico. Além de ligar o Ocidente com a Ásia, e não estamos agora a falar nem do Brasil nem de África, o que fizemos foi ligar produções de totalmente distintas regiões. Por exemplo, a laca, encontramos formas na Índia e no Japão, e peças de mobiliário japonês que são transformadas em mobiliário indiano.”
Pergunto se existe comparação com outros países europeus. “Ocupámos o espaço de uma grande potência anterior que era a China, por sermos muito mais abertos. E, claro, criámos as rotas para depois virem outras potências. Mas do ponto de vista cultural, não têm nada que ver com o lastro cultural que Portugal deixou. Isso é uma mais-valia. Vou ser um pouco primário, mas vejo que a produção pelaVOC, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, era muito mais estandardizada, muito menos criativa. Nisso os nossos vizinhos espanhóis, com as Filipinas e a rota de Manila – não são como os portugueses, atenção, porque a escala é pequena –, são muito mais abertos. Os holandeses e os ingleses é o puro colonialismo, o puro comércio, o espírito prático protestante.”
Prossegue o historiador: “Entristece-me um pouco que ainda hoje Portugal não consiga tirar proveito dessa dimensão cultural. É tudo muito pontual. Nós temos um primeiro-ministro que é de uma família que vem de Goa, e não sendo um admirador de muitas das suas políticas, tenho de reconhecer que isso é um potencial imenso.” Relembro a africanidade de Laura, a falecida mulher do ex-primeiro-ministro Passos Coelho. “Sim, nós temos essa grande capacidade de diálogo com o outro. Há potencialidades da imagem portuguesa que não são desenvolvidas. O cosmopolitismo, o conhecimento das nações. A transculturalidade que desenvolvemos. Dizia-se que havia um português em cada porto e a verdade é que ainda hoje os mais novos tentam vingar fora. Há uma capacidade de adaptação que temos e acho única.”
Nuno Vassalo e Silva aproveita para recordar a sua passagem de um mês na Secretaria de Estado da Cultura, no efémero segundo governo PSD-CDS depois das eleições de 2015. Diz ter orgulho nessa nomeação, e admirar o esforço dos quatro anos anteriores (em que foi diretor-geral do Património Cultural) para combater a crise, mas admite que o apelo do primeiro-ministro para que os jovens procurassem oportunidades no estrangeiro foi mal entendido”, apesar de corresponder a uma velha tradição de emigração.
A conversa decorre numa vinda a Lisboa para a inauguração da exposição, mas a vida do historiador é agora em Paris, à frente da delegação da Gulbenkian. “Tenho o privilégio de trabalhar com a Fundação Gulbenkian há 20 anos. E devo dizer que este convite me encheu de orgulho. E espero corresponder ao anseio da administração em mudar o paradigma da presença da fundação na sociedade francesa, sobretudo na promoção da língua portuguesa. Temos a melhor biblioteca fora de Portugal e do Brasil de fundos em português. E agora existe um grande plano de apoio às artes, e instituições francesas vão contar com patrocínios que viabilizam exposições de artistas portugueses. No próximo ano teremos a Saison Portugal-França. Exposições, concertos, também debates filosóficos.”
Falo do filme A Gaiola Dourada, comédia de sucesso de um realizador franco-português, baseada no estereótipo do casal emigrante pedreiro-porteira, e pergunto a Nuno Vassalo e Silva se os franceses têm noção do que Portugal é. “Um dos meus melhores amigos é francês. Ele, e em regra as elites francesas, sempre reconheceram em Portugal o potencial cultural. Agora estamos numa curiosa fase de interesse novo. Ouço grande entusiasmo por nomes como o realizador Pedro Costa, o músico António Zambujo ou o escritor Gonçalo M. Tavares, mas há muitos mais. E se estou lá só desde março, tenho contacto com França praticamente desde que nasci. A minha tia-avó Maria Lamas conheci-a exilada em Paris.” Admito a surpresa, não sabia o laço com a jornalista e escritora feminista, irmã do último governador de Goa.
Por falar em surpresas, na hora da despedida, Nuno Vassalo e Silva conta-me uma outra faceta sua, de pós-produção vídeo de desenhos animados ainda muito jovem. “Um deles foi A Abelha Maia”, diz [risos].
O HISTORIADOR DIZ QUE O AVÔ QUANDO ERA GOVERNADOR DE GOA TINHA A PERCEÇÃO DE QUE ESTAVA A LUTAR CONTRA O TEMPO, MAS QUE EM PORTUGAL HOUVE SEMPRE A ILUSÃO DE QUE A INVASÃO NÃO ACONTECERIA. PERGUNTO SE UM ACORDO COM A ÍNDIA SEMELHANTE AO FEITO COM A CHINA PARA A DEVOLUÇÃO DE MACAU EM 1999, COM UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO DE 50 ANOS QUE PROTEGESSE A LÍNGUA, PODIA TER SIDO APLICADO A GOA, ONDE SEMPRE SE FALOU MUITO MAIS O PORTUGUÊS. “COM O ESTADO NOVO NUNCA.”