“Não me revejo no conservadorismo do fado tradicional”
MÚSICA O guitarrista Ricardo Gordo está de regresso a solo com Conversas de Esquina, um álbum no qual a guitarra portuguesa surge em diálogo com a world music, a eletrónica e o hip-hop.
Disseram-lhe um dia que, se quisesse tocar guitarra portuguesa, teria de cortar o cabelo e aprender fado. Faria as duas coisas, mas apenas quando lhe apeteceu e não porque “tinha de o fazer”. Pelo caminho, também provou que a guitarra portuguesa não tinha de viver para sempre aprisionada ao fado. A solo, a acompanhar nomes como Dulce Pontes, Stereossauro e Beatbombers, mas também enquanto colaborador de nomes tão diversos como The Legendary Tigerman, Carlos do Carmo, Paulo de Carvalho, Rui Reininho, DJ Ride, Chullage, Dino d’Santiago, Ana Moura, Gisela João, Slow J, Capicua ou José Cid, o músico nascido em Portalegre há 33 anos é já desde há muito, e apesar da juventude, uma referência deste instrumento. Ao qual voltou a alargar horizontes em Conversas de Esquina, o novo álbum a solo, feito em parceria com o músico Samuel Lupi e o produtor Madrak, com a guitarra portuguesa a surgir em diálogo com a world music, a eletrónica e o hip-hop, na companhia de convidados como Valéria ou Stereossauro, entre outros.
Começou a tocar quase por acaso, depois de ter desistido do curso de Engenharia de Instrumentação e Metrologia, que frequentava no Porto. Foi o pai, também ele músico, que lhe falou de um curso de guitarra portuguesa no instituto politécnico de Castelo Branco, criado pelo guitarrista Custódio Castelo. “Fui lá experimentar e mal segurei pela primeira vez uma guitarra portuguesa houve uma química muito rápida, por causa da vibração da madeira e das cordas”, recorda o músico, que já na altura tocava guitarra elétrica em bandas de rock. O primeiro disco em nome próprio foi lançado mal acabou a licenciatura, seguindo-se o mestrado, um estágio em Coimbra e neste momento ele próprio dá aulas de guitarra portuguesa, no conservatório de Lisboa. Curiosamente, como revela nesta entrevista ao DN, este novo trabalho poderá representar uma espécie de “despedida do instrumento”, pelo menos da forma quase exclusiva como a ele se dedicou nestes últimos anos.
Podemos afirmar que este álbum marca um afastamento definitivo como fado, por parte de um artista que tem levado aguitarra portuguesa a outros territórios?
Talvez o meu disco anterior, Retrato, feito com a Valéria Carvalho, tenha sido mais, porque foi um assumido álbum de fado feito numa altura em que me sentia bem era a fazer coisas mais alternativas. Ouve todo um acumular de experiências, em especial com a Dulce Pontes e com o Stereossauro, que me levaram por esse caminho. Enquanto músico o meu desejo é criar uma sonoridade o mais abrangente possível e julgo que o consegui fazer neste álbum. O fado ainda continua um meio demasiadoconservador para aceitar este ti pode derivações?
Isso tem tudo que ver com questões de nicho. Na minha opinião, o fado tradicional ainda continua muito conservador e não me revejo em nada nessa posição. Basta ver o que está a acontecer aqui ao lado, em Espanha, com o flamenco, ou em Cabo Verde, com a morna, e até mesmo no Brasil com o choro, estilos que conseguiram renovar-se e ganhar novos públicos sem perderem a sua essência, bem pelo contrário. Por cá, já começam a ver-se algumas movimentações nesse sentido, como o trabalho que a Ana Moura está a fazer, por exemplo, trazendo produtores da pop para o fado. O caminho tem de ser esse e, se assim for, acredito que, se calhar, dentro de 20 anos tudo será diferente. Mas por outro lado, se pensarmos que até Amália Rodrigues e Carlos do Carmo foram criticados quando resolveram arriscar, está tudo dito quanto ao alegado conservadorismo do fado tradicional. E até onde pode ir aguitarra portuguesa?
A todo o lado, como aliás tenho tentado provar na minha música e nas colaborações que faço, mas também por isso este disco é, de certa forma, uma despedida do instrumento, porque é muito difícil ser instrumentista de guitarra portuguesa for ado fado. O próprio Carlos Paredes, queéaminh amai or referência, teve muito pouco tempo de consagração e nunca viveu apenas da música. Estou imensamente grato à guitarra portuguesa por tudo o que me deu, mas neste momento estou mais virado para os sintetizadores, para a eletrónica e para a produção, é esse o caminho que pretendo seguir no futuro, até porque me vejo cada vez mais como compositor. É nesse sentido que surge o alter
egoSlo.Fire,tambémelecomuma
participaçãonoúltimotemadoálbum?
Sim, ele simboliza a autonomia que consegui obter nestes últimos anos. Já não me sinto um mero guitarrista, mas sim um músico cujo objetivo é chegar ao maior número de pessoas. VoltandoaestaConversadeEsquina,algunstemassãobastanteantigos,dequandoaindaeraestudante deguitarraportuguesaemCastelo Branco...
É algo que costumo fazer desde que comecei a compor, deixar muitos temas de fora, porque de alguma forma não se encaixam com o presente, mas aos quais regresso mais tarde, quando sinto que, por alguma razão, voltam a fazer sentido. O tema Céu, por exemplo, é o resultado da minha primeira experiência com eletrónica, ainda em 2011, quando ainda era estudante. Na altura não percebia nada de eletrónica, mas o resultado final soou-me bastante bem e a versão original é muito próxima da que se ouve no disco. Já a Ode às Andorinhas foi uma faixa lançada no meu primeiro EP, Serendípia, que sempre achei que podia dar algo mais e por isso pedi ao Madrak para fazer uma nova mistura. Comosurgiuointeressepelamúsicaeletrónica?
A guitarra portuguesa tem sido a minha vida, mas também o meu trabalho e se calhar por isso, hoje, para relaxar, mais depressa pego numa guitarra elétrica ou num sintetizador. E pouco tempo antes do primeiro confinamento comprei um sintetizador. O facto de termos de ficar em casa permitiu-me ter tempo para o estudar e experimentar, o que me mostrou todo um novo caminho, em termos de composição. Senti realmente que tinha encontrado um novo caminho. É por isso que considero este álbum um marco na minha carreira. Não só é o meu melhor trabalho, como me abriu muitas portas para explorar no futuro. dnot@dn.pt
“Se pensarmos que até Amália Rodrigues e Carlos do Carmo foram criticados quando resolveram arriscar, está tudo dito quanto ao alegado conservadorismo do fado tradicional.”