Diário de Notícias

“Não me revejo no conservado­rismo do fado tradiciona­l”

MÚSICA O guitarrist­a Ricardo Gordo está de regresso a solo com Conversas de Esquina, um álbum no qual a guitarra portuguesa surge em diálogo com a world music, a eletrónica e o hip-hop.

- ENTREVISTA MIGUEL JUDAS

Disseram-lhe um dia que, se quisesse tocar guitarra portuguesa, teria de cortar o cabelo e aprender fado. Faria as duas coisas, mas apenas quando lhe apeteceu e não porque “tinha de o fazer”. Pelo caminho, também provou que a guitarra portuguesa não tinha de viver para sempre aprisionad­a ao fado. A solo, a acompanhar nomes como Dulce Pontes, Stereossau­ro e Beatbomber­s, mas também enquanto colaborado­r de nomes tão diversos como The Legendary Tigerman, Carlos do Carmo, Paulo de Carvalho, Rui Reininho, DJ Ride, Chullage, Dino d’Santiago, Ana Moura, Gisela João, Slow J, Capicua ou José Cid, o músico nascido em Portalegre há 33 anos é já desde há muito, e apesar da juventude, uma referência deste instrument­o. Ao qual voltou a alargar horizontes em Conversas de Esquina, o novo álbum a solo, feito em parceria com o músico Samuel Lupi e o produtor Madrak, com a guitarra portuguesa a surgir em diálogo com a world music, a eletrónica e o hip-hop, na companhia de convidados como Valéria ou Stereossau­ro, entre outros.

Começou a tocar quase por acaso, depois de ter desistido do curso de Engenharia de Instrument­ação e Metrologia, que frequentav­a no Porto. Foi o pai, também ele músico, que lhe falou de um curso de guitarra portuguesa no instituto politécnic­o de Castelo Branco, criado pelo guitarrist­a Custódio Castelo. “Fui lá experiment­ar e mal segurei pela primeira vez uma guitarra portuguesa houve uma química muito rápida, por causa da vibração da madeira e das cordas”, recorda o músico, que já na altura tocava guitarra elétrica em bandas de rock. O primeiro disco em nome próprio foi lançado mal acabou a licenciatu­ra, seguindo-se o mestrado, um estágio em Coimbra e neste momento ele próprio dá aulas de guitarra portuguesa, no conservató­rio de Lisboa. Curiosamen­te, como revela nesta entrevista ao DN, este novo trabalho poderá representa­r uma espécie de “despedida do instrument­o”, pelo menos da forma quase exclusiva como a ele se dedicou nestes últimos anos.

Podemos afirmar que este álbum marca um afastament­o definitivo como fado, por parte de um artista que tem levado aguitarra portuguesa a outros território­s?

Talvez o meu disco anterior, Retrato, feito com a Valéria Carvalho, tenha sido mais, porque foi um assumido álbum de fado feito numa altura em que me sentia bem era a fazer coisas mais alternativ­as. Ouve todo um acumular de experiênci­as, em especial com a Dulce Pontes e com o Stereossau­ro, que me levaram por esse caminho. Enquanto músico o meu desejo é criar uma sonoridade o mais abrangente possível e julgo que o consegui fazer neste álbum. O fado ainda continua um meio demasiadoc­onservador para aceitar este ti pode derivações?

Isso tem tudo que ver com questões de nicho. Na minha opinião, o fado tradiciona­l ainda continua muito conservado­r e não me revejo em nada nessa posição. Basta ver o que está a acontecer aqui ao lado, em Espanha, com o flamenco, ou em Cabo Verde, com a morna, e até mesmo no Brasil com o choro, estilos que conseguira­m renovar-se e ganhar novos públicos sem perderem a sua essência, bem pelo contrário. Por cá, já começam a ver-se algumas movimentaç­ões nesse sentido, como o trabalho que a Ana Moura está a fazer, por exemplo, trazendo produtores da pop para o fado. O caminho tem de ser esse e, se assim for, acredito que, se calhar, dentro de 20 anos tudo será diferente. Mas por outro lado, se pensarmos que até Amália Rodrigues e Carlos do Carmo foram criticados quando resolveram arriscar, está tudo dito quanto ao alegado conservado­rismo do fado tradiciona­l. E até onde pode ir aguitarra portuguesa?

A todo o lado, como aliás tenho tentado provar na minha música e nas colaboraçõ­es que faço, mas também por isso este disco é, de certa forma, uma despedida do instrument­o, porque é muito difícil ser instrument­ista de guitarra portuguesa for ado fado. O próprio Carlos Paredes, queéaminh amai or referência, teve muito pouco tempo de consagraçã­o e nunca viveu apenas da música. Estou imensament­e grato à guitarra portuguesa por tudo o que me deu, mas neste momento estou mais virado para os sintetizad­ores, para a eletrónica e para a produção, é esse o caminho que pretendo seguir no futuro, até porque me vejo cada vez mais como compositor. É nesse sentido que surge o alter

egoSlo.Fire,tambémelec­omuma

participaç­ãonoúltimo­temadoálbu­m?

Sim, ele simboliza a autonomia que consegui obter nestes últimos anos. Já não me sinto um mero guitarrist­a, mas sim um músico cujo objetivo é chegar ao maior número de pessoas. Voltandoae­staConvers­adeEsquina,algunstema­ssãobastan­teantigos,dequandoai­ndaeraestu­dante deguitarra­portuguesa­emCastelo Branco...

É algo que costumo fazer desde que comecei a compor, deixar muitos temas de fora, porque de alguma forma não se encaixam com o presente, mas aos quais regresso mais tarde, quando sinto que, por alguma razão, voltam a fazer sentido. O tema Céu, por exemplo, é o resultado da minha primeira experiênci­a com eletrónica, ainda em 2011, quando ainda era estudante. Na altura não percebia nada de eletrónica, mas o resultado final soou-me bastante bem e a versão original é muito próxima da que se ouve no disco. Já a Ode às Andorinhas foi uma faixa lançada no meu primeiro EP, Serendípia, que sempre achei que podia dar algo mais e por isso pedi ao Madrak para fazer uma nova mistura. Comosurgiu­ointeresse­pelamúsica­eletrónica?

A guitarra portuguesa tem sido a minha vida, mas também o meu trabalho e se calhar por isso, hoje, para relaxar, mais depressa pego numa guitarra elétrica ou num sintetizad­or. E pouco tempo antes do primeiro confinamen­to comprei um sintetizad­or. O facto de termos de ficar em casa permitiu-me ter tempo para o estudar e experiment­ar, o que me mostrou todo um novo caminho, em termos de composição. Senti realmente que tinha encontrado um novo caminho. É por isso que considero este álbum um marco na minha carreira. Não só é o meu melhor trabalho, como me abriu muitas portas para explorar no futuro. dnot@dn.pt

“Se pensarmos que até Amália Rodrigues e Carlos do Carmo foram criticados quando resolveram arriscar, está tudo dito quanto ao alegado conservado­rismo do fado tradiciona­l.”

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CONVERSAS DE ESQUINA Ricardo Gordo

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