Diário de Notícias

“O MEU AVÔ COSTUMAVA DIZER: PARA FILMAR UM PEIXE, TEMOS DE NOS TORNAR NUM PEIXE”

“TEMOS DE CONSTRUIR A ESTAÇÃO ESPACIAL INTERNACIO­NAL DOS MARES”

- TEXTO HELENA TECEDEIRO

NETO MAIS VELHO DE JACQUES-YVES COUSTEAU, FABIEN AINDA TENTOU CARREIRA NO MARKETING, MAS A FORÇA DO APELIDO FOI MAIS FORTE E TORNOU-SE UM AQUANAUTA. DEPOIS DE UMA PARTICIPAÇ­ÃO NA GLEX SUMMIT 2021, ORGANIZADA PELO CLUBE DE EXPLORADOR­ES DE NOVA IORQUE E PELA EXPANDING WORLD, DE MANUEL VAZ, FALOU AO DN POR ZOOM SOBRE PASSAR 31 DIAS DEBAIXO DE ÁGUA, A NECESSIDAD­E DE INVESTIR TANTO EM EXPLORAR OS OCEANOS COMO O ESPAÇO E SOBRE O SEU LABORATÓRI­O SUBMARINO PROTEUS.

Tinha 4 anos quando mergulhou pela primeira vez, cresceu nos navios do seu avô Jacques-YvesCous te au. Ser aqua nau ta erain evitável? Não. Na verdade nunca nos foi imposto em crianças – quando digo nós estou a falar da minha irmã e de mim. Sempre fomos incentivad­os a fazer o que nos fizesse sentir realizados, o que nos apaixonass­e. Eu cresci com o oceano como pano de fundo e de cada vez que a família se juntava era muito mais fácil fazê-lo em expedição. Essa foi a minha sala de aula. Muitas, muitas vezes. E eles foram professore­s maravilhos­os que me abriram os olhos, muito mais do que na verdadeira sala de aula. Na verdade, nunca fui muito bom na escola. Estava sempre a sonhar com a próxima expedição, com a próxima aventura. Mas de certa forma até gostava que a família me tivesse encorajado mais a seguir este caminho porque mais tarde tive de recuperar muita coisa. Estou agradecido que nos tenha incentivad­o a encontrar o nosso caminho. No meu caso acabei por dar uma volta completa eregressar­à filosofia emissão da família. O mundo dos oceano sé a caixa de Pandora dos mistérios[ risos ]. Cous te auéumape lido tão marcante.OFabientra­balh ou três anos em mark eting, tentou escapara o peso

doapelido?

Havia curiosidad­e. Mesmo enquanto ia crescendo, percebi que as pessoas tinham certos preconceit­os e ideias feitas só de ouvirem o meu nome. Mas eu não cedo facilmente à pressão. Por isso decidi ir ver o que havia fora do mundo dos Cousteau. Fui para marketing e acho que até me dei bastante bem. Ganhava sem dúvida melhor! Mas senti que não conseguia encaixar-me ali. Não era uma atividade que me apaixonass­e, como a exploração dos oceanos apaixona. Então dei meia volta e regressei às coisas que amo. Um dos seus primeiros interesse foram os tubarões…

Que criança não sonha com tubarões? Seja porque tem medo de tubarões ou porque adora tubarões! No seu caso começou como filme deStevenSp­ielb erg?

Claro! Eu era um rapazinho e tinha visto tubarões de forma muito diferente na vida real. Por isso quando vi o filme num ecrã gigante, vi um animal dez vezes maior do que os tubarões normais são, a comer barcos e mergulhado­res e toda a espécie de coisa – eu nunca experienci­ei isso na vida real! E ficou-me sempre na mente a pergunta: porque estamos a demonizar estes animais? Até construiu um submarino em formade tubarão, a que chamou T roy! [Risos] Essa foi uma maneira perversa que encontrei de misturar o meu amor pela mitologia grega e a minha paixão pela exploração dos oceanos e pelos tubarões em especial. Troy era o tubarão de Troia. Com ele consegui ir para além da barreira que criamos quando colocamos pessoas dentro de gaiolas e filmamos animais que alimentamo­s, esperando que eles ajam naturalmen­te. Para mim, não faz sentido. É puro sensaciona­lismo, mas não mostra de todo o que os animais fazem quando não estamos por perto. Logo, a melhor maneira de o fazer é tornarmo-nos no animal. Éprecisoto­rnar-senumtubar­ão para ver como os tubarões se comportam?

Exatamente. O meu avô costumava dizer: para filmar um peixe, temos de nos tornar num peixe [solta uma valente gargalhada]. Também trabalhou no laboratóri­o submarino Aquarius.Co mo foi essa experiênci­a de passar muitos dias debaixodoo­ceano?

O meu avô construiu o primeiro habitat submarino, o Continenta­l Shelf Station Two, que inspirou o seu documentár­io vencedor de um Óscar Le Monde sans Soleil (1964). Aquela era a imagem que eu tinha de um habitat submarino até ter a oportunida­de de organizar e liderar aM is si on31emqu elevei uma equipa até ao Aquariusdu­r ante 31 dias– a mais longa missão no laboratóri­o. OAqua riu sé o último laboratóri­o submarino ainda em funcioname­nto. Aquela missão abriu-me os olhos para o que deve ter sido ser um pioneiro. E a frustração que as limitações devem ter causado. Deu-me um momento “Aha!” Aquela maravilhos­a p lata formaéa ferramenta que nosf alta. Mas oAquarius tem 32 anos, é um dinossauro. Temos de olhar para o próximo passo. Por isso temo proje to Pro teus? Sim. O momento mais triste da minha carreira como explorador dos oceanos foi quando tive de abandonar a minha casa submarina, em que os meus vizinhos, os peixes e a vida submarina, se tinham habituado a que eu estivesse ali. Tornar-se aqua nau taédi ferente de ser mergulhado­r ousubmarin is ta. Ser aqua nau taéirp ara o oceano e ficar livre dos limites do tempo. Em vez de termos um mergulho de 45 minutos a partir da superfície até 20 metros, com um habitat submarino podemos ficar cinco ou seis horas na água. Claro que ficamos cansados, precisamos de ir à casa de banho, etc. Mas temos seis vezes mais tempo num único mergulho. Isso permite-nos ver coisas que geralmente não se consegue ver. Também nos permite recolher dados, amostras e fazer todo o trabalho necessário no local, porque temos ali o nosso laboratóri­o e todas as ferramenta­s necessária­s, em vez de ter de levar as amostras num navio, atravessar

meio mundo, congelá-las durante seis meses, um ano, cinco anos, e só depois fazer a análise de dados. O meu momento mais triste foi voltar à superfície e trocar aquela imensa explosão de vida do fundo do oceano por um imenso vazio quando olhei à volta e não havia verdadeira­mente muita coisa para ver além de um barco, uns quantos seres humanos e uma gaivota a sobrevoar-nos. Em comparação, o fundo do mar era muito mais a minha casa do que o mundo à superfície. Este tipo de experiênci­a emocional é um fator essencial na nossa tomada de decisões. É algo que a maior parte de nós, 99%, não terá oportunida­de de experienci­ar em primeira mão. Mas devemos tentar proporcion­ar esta experiênci­a a tantas pessoas quantas for possível. Seja em tempo real ou virtualmen­te. Para perceberem a importânci­a do mundo submarino. Dito isto, pensei: temos de construir a Estação Espacial Internacio­nal dos Mares. Essaéa ideia: criar uma estação espacial debaixo de água?

O Proteus, que vai ser o maior laboratóri­o marinho alguma vez criado, terá dez vezes o tamanho do Aquarius. E vai dar-nos não só a oportunida­de de levar lá quatro ou cinco ou seis aquanautas, como de duplicar esse número. Não só durante dias ou semanas, mas durante meses e talvez até mais tempo. Conseguir construir algo que é de ponta, que é modular, em que as secções podem ser intercambi­áveis, de forma a poder constantem­ente evoluir ou adaptarmo-nos às necessidad­es do grupo de pesquisa, em que podemos acrescenta­r, ou subtrair ou alterar a infraestru­tura interna para acompanhar a tecnologia e as exigências modernas e evoluir, é algo vitalmente importante para a longevidad­e de um projeto tão ambicioso. Estamos a implementa­r todas as novas abordagens que vemos na exploração espacial, estas parcerias público-privadas, na exploração dos oceanos. Faz mergulho há quase meio século, as coisas que vê no fundo domar têm mudado muito? É fundamenta­l mostrar às pessoa soque está a acontecer nos oceanos: poluição, plásticos,etc.?

Na minha experiênci­a com os oceanos, e se juntar a isso mais duas gerações da família, vimos uma quantidade extraordin­ária de devastação num período muito curto de tempo. Em 50 anos vimos as coisas correr pessimamen­te para os recifes de corais – 60% foram afetados devido às alterações climáticas eà poluição. E quando chegarmos ao final do século mais de 95% estarão mortos ou moribundos, se não fizermos nada. Esse é um aspeto. E tudo isto devido àativ idade humana. Os egundoaspe­toéo consumo excessivo de recursos naturais. O que fizemos foi consumir, consumir, consumir, como se os recursos fossem infinitos. 60% dos recursos pesqueiros desaparece­ram. Isto não pode continuar. E há a questão dos microplást­icos. Tornou-se um problema tão grande que já não se limita aos oceanos. Podemos encontrar abelhas com microplást­icos no corpo. Estamos a respirar, a comer, o nosso próprio lixo. Metade do peixe que vemos no supermerca­do tem microplást­icos dentro. Os nossos próprios corpos, em média, carregam globalment­e o equivalent­e a um cartão de crédito de plástico. Como se muda isto? Em primeiro lugar, temos de saber o que estamos a enfrentar. Mas também temos de perceber o que isso está a fazer ao nosso ecossistem­a para nos prepararmo­s e construirm­os soluções para os nossos filhos. Disse há tempos numa entrev is taà CNN que explorar os oceano sé mil vezes mais importante do que explorar o espaço, para o nosso futuro. Pode explicar porquê?

Vou dizer-lhe: adoro a exploração espacial. Sonho explorar os oceanos de Marte, por exemplo. Ou [a lua de

Júpiter] Europa. Desde que o bilhete seja de ida e volta. Porque ainda sinto que estep la netaé lindo e único. A exploração espacialé muito importante, não me interprete mal, mas em termos dos próximos 30 a 50 anos, para a nossa espécie, a exploração oceânicaé extraordin­ariamente importante. E gastamos mil vezes menos na exploração dos oceanos do que na exploração do espaço. Está completame­nte distorcido. Porque estamos a falar dos sistemas que permitem a vida. Portanto, por muito que eu apoie colónias na Lua, em Marte ou assim, quantas pessoas é que vamos mandar para lá quando destruirmo­s este planeta – 10, 20,100, 1000? Então e os restantes 7,8 mil milhões que ficarem para trás? Não se trata de desprezar a exploração espacial, mas é uma questão de razoabilid­ade dizer que o nosso dinheiro é muito mais bem gasto – ou que pelo menos devíamos gastar a mesma quantidade – na exploração e na conservaçã­o dos oceanos. O oceano dá-nos o ar que respiramos, a alimentaçã­o de que dependemos, proporcion­a o bem-estar de que beneficiam­os quando vamos de férias. Porque achaque não estamos a investir no oceano como no espaço? Porque damos os oceanos por garantidos! Porque, por desconheci­do que nos seja, uma vez que só exploramos menos de 5%, o oceano está mesmo aqui ao pé de nós. Se acreditarm­os na ciência, a nossa espécie e toda a vida teve origem no oceano. Dependemos de um ecossistem­a marinho saudável para termos um futuro saudável. É uma questão de compreensã­o, de as pessoas se apaixonare­m pelo oceano. E isto lembra-me uma frase que o meu avô me dizia quando eu era miúdo: “As pessoas protegem o que amam, amam o que compreende­m e compreende­m o que lhes é ensinado.” helena.r.tecedeiro@dn.pt

“O MEU MOMENTO MAIS TRISTE FOI VOLTAR À SUPERFÍCIE E TROCAR AQUELA IMENSA EXPLOSÃO DE VIDA DO FUNDO DO OCEANO POR UM IMENSO VAZIO QUANDO OLHEI À VOLTA E NÃO HAVIA MUITA COISA PARA VER ALÉM DE UM BARCO, UNS QUANTOS SERES HUMANOS E UMA GAIVOTA.”

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Fabien Cousteau e a irmã, Céline, cresceram a mergulhar com o pai, Jean-Michel (ao lado), e o avô Jacques-Yves (foto de baixo, em crianças). Agora, o aquanauta não esconde o orgulho no Proteus, o seu projeto de laboratóri­o submarino.
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