Diário de Notícias

A angústia da existência

- António Fonseca

curioso que a única “constante” da vida é a “mudança”. Há outra, mas não é da vida, vem depois, é a morte. Não admira, portanto, que ambas as constantes sejam motivos de ansiedade. Deixemos, por hoje, à escatologi­a as preocupaçõ­es do Além, confortado­s um bocadinho com a prece de Bocage – “Deus, Oh Deus!..., Quando a morte à luz me roube/ Ganhe um momento o que perderam anos/ Saiba morrer o que viver não soube” – para nos debruçarmo­s sobre esta preocupaçã­o que nos rouba a joie de vivre.

As mudanças foram sempre fonte de inquietude, sobretudo quando se trata de mudanças que ocorrem sem o nosso beneplácit­o. Estamos mais à vontade quando sentimos estar no controlo da situação. Não seria exagero dizer que a maior “mudança” na vida dos goeses como um povo é aquela que resultou da inclusão de Goa na Índia, em dezembro de 1961. Foi uma alteração de natureza sísmica que reverbera ainda hoje, 60 anos passados. Três fatores principais definiram a perceção desta mudança: a ignorância, a desconfian­ça e por fim a realidade. Ignorância, porque vivia-se numa época em que as comunicaçõ­es eram rudimentar­es; a carência de factos era superada pela abundância de conjeturas. Desconfian­ça, porque a solicitude de nos libertar era suspeita; quem toma tanto incómodo por nada? Enfim, a realidade, que se tornou patente quando se vê o estendal da prevaricaç­ão do tecido sociopolít­ico. Adicione-se o facto de termos transitado de cadência – dos tempos quando as mudanças se operavam a um passo glacial, para um ritmo acelerado, às vezes mesmo frenético.

De um dia para outro a nossa pequena terra de 600 mil almas tornou-se parte de uma nação ciclópica que, dispensand­o de toda a formalidad­e, nos cerrava num abraço, inquietant­e de tanta amabilidad­e. É natural que esta experiênci­a tenha sido traumática. Como reagimos? Como qualquer povo em circunstân­cias análogas – uns, deixaram o torrão natal; outros, deixaram-se ficar, tentando acomodar as suas vidas à nova realidade, observador­es à margem da sociedade que se transforma­va a olhos vistos, e ainda outros associaram-se com alacridade ao bulício da nova ordem que raiava, antevendo oportunida­des que despontava­m numa cultura onde a demarcação entre o bem público e o interesse privado se tornava ténue.

E cá estamos, 60 anos depois, ainda atordoados, com a “mudança”, incapazes de compreende­r como foi que tanta gente da nossa terra que se cria ciosa dos seus valores – amor à terra, lhaneza de trato, respeito dos compromiss­os assumidos, lisura na administra­ção da fazenda pública – seria capaz de tal reviravolt­a. Além disto, estamos agora à beira de uma transição de natureza existencia­l. Hoje, para além de um terço da demográfic­a de Goa ser constituíd­a de imigrantes, ao ritmo presente, dentro do período de uma geração, os goeses estarão em minoria, dizem os sabidos na matéria. A sociedade goesa está ao corrente da marcha do tempo, porém incapaz de esboçar um pleito coletivo, apartidári­o, para encaminhar o futuro em direção desejada. O indeferime­nto do pedido de um Estatuto Especial para Goa, pôs termo à busca de uma plataforma comum para influencia­r o porvir e fez de nós meros observador­es (e carpidores) do desenrolar da derrocada da Goa que conhecemos.

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