Trabalhos de casa
Otema laboral não será muito estival, mas é nele que pensamos agora. E a culpada é uma e só uma, Patrícia Mbengani Bravo Mamona, a jovem de 32 anos que se triplossaltou ao comprido por 15,01 metros de distância, o que é obra, trazendo para esta sua casa, que é nossa, que é Portugal, uma medalha de prata. Com isso, elas as duas, a prata e a Patrícia, puseram aos triplos saltos os nossos corações, que tão gastos andam à conta desta covid, pelo que muito obrigado, Mamona.
Há uns dias, antes do histórico salto a três tempos, deu Patrícia Mamona uma entrevista a semanário de grande expansão, na qual recordou aos incautos e madraços o trabalho que lhe dava conseguir pular daquela forma assim, a grande forma que é dela, só dela, e por isso mereceu do jurado a prata. A quem a quis ouvir, disse Mamona hic et nunc que “para mim, um centímetro são cinco anos de trabalho”, frase que desperta assombro, é claro, pela fibra demonstrada, pela determinação e autodisciplina necessárias para empenhar tanto em tão pouco. É que, bem vistas as coisas, cinco anos de vida sempre são, em direitas contas, 1826 dias, 43 824 horas, 2,629 milhões de minutos e uma grande enormidade de segundos
(157 766 400, para sermos precisos). Para um centímetro só, é muito tempo, dá um ano de trabalho para dois milímetros de salto. Mesmo descontando o exagero da atleta e o facto de ela estar a falar metafórica e alegoricamente, impõe-se a fatal pergunta: para dez milímetros, não mais do que isso, valerá a pena tanto esforço? Será isso justo e humano?
Sem querer estragar a festa da prata, sempre devemos lembrar que, nestas Olimpíadas pandémicas, houve uma menina ginasta, e famosa, que desistiu da compita por não aguentar mais pressão. Com apenas 24 anos, Simone Biles já era a ginasta americana mais premiada da história dos EUA, com um total de 30 medalhas repartidas entre os Jogos Olímpicos e os Campeonatos Mundiais de Ginástica Artística. Agora, em Tóquio, a questão era uma, só uma: ultrapassar as 33 medalhas deVitaly Scherbo, o mais medalhado ginasta da história dos Jogos, com seis medalhas de oiro, quatro delas conquistadas num só dia. Simone Biles teve a coragem e a força de dizer não, esclarecendo que a sua saúde mental e o seu bem-estar eram mais importantes do que todas as medalhas que tivessem para lhe dar. “Temos de proteger as nossas mentes e os nossos corpos e não fazer aquilo que o mundo espera de nós”, afirmou a intrépida garota. Nós, que a ouvimos, andamos tão enfronhados e tão embrenhados nesta coisa das medalhas e dos recordes que logo nos interrogámos se, ao falar assim, a miúda não estaria tontita, ou pior. Nada disso, Simone Biles foi de uma lucidez tremenda, acreditem.
Não é grande originalidade dizer-se que, desde há muito, o desporto está desvirtuado da sua principal missão, que é fazer o bem ao corpo e ao espírito e, com isso, favorecer sociedades mais sadias e mais felizes de si. Contudo, talvez ainda não nos tenhamos apercebido de que, nos nossos dias, as actividades desportivas copiam e reproduzem o que de pior existe no mundo do trabalho e das profissões. Hoje, o otium mimetiza o negotium, amplifica as suas taras e os seus tiques, quando deveria ser justamente o contrário; as sociedades é que deveriam ser beneficiadas pelo desporto e pelo lazer, não estes a serem contaminados pelo frenesi competitivo que por aí grassa, sem graça. Andarem jovens a matar-se por uns centímetros e por umas medalhas é algo que, além de não lhes fazer bem ao espírito, nem sequer ao corpo, corrompe aquilo que é, ou deveria ser, a função desportiva. Simone Biles, reparem, já tinha 30 medalhas ao peito, mas não, isso não era suficiente, impunham-lhe mais recordes, sempre mais e mais metas, estatísticas, vãs glórias.
Num livro acabado de sair (Trabalho. Como Utilizamos o Nosso Tempo, Edições Desassossego), o antropólogo James Suzman fala-nos da forma como, ao longo dos séculos, temos lidado com uma actividade intelectual ou braçal que ocupa o cerne das nossas vidas, mais do que qualquer outra. No final da obra, ao abordar a contemporaneidade, Suzman conta a história incrível deWayne Oates, um homem nascido em 1917 em Greenville, na Carolina do Sul, no meio da mais completa miséria. Quando era criança, o pai abandonou o lar eWayne foi criado por uma avó e pela irmã, pois a mãe, para sustentar a família, trabalhava de sol a sol numa fábrica de algodão das redondezas. Aos 14 anos, um golpe de sorte: foi seleccionado para fazer parte de um grupo de meninos pobres mas especialmente dotados que iam integrar o U.S. Representatives Page, um programa de estágios em que o Congresso dos EUA emprega jovens para fazerem pequenos trabalhos sem estarem ao serviço de qualquer partido (um parêntesis conservador: o programa existiu durante mais de 180 anos sem quaisquer problemas, mas só agora, no nosso tempo, é que surgiram ou foram noticiados casos de drogas, álcool e abusos sexuais, uma vergonha). Como seria de esperar, o jovemWayne ficou maravilhado com a experiência emWashington, que nele teve o efeito de uma epifania, e a partir daí, com uma determinação férrea, igual à da nossa Patrícia, decidiu estudar. Foi o primeiro da sua família a chegar à universidade, trabalhou a valer, fez-se pastor protestante e, não contente, formou-se em Medicina e, depois, doutorou-se em Psicologia das Religiões. Publicou dezenas de livros, foi professor de Teologia e de Psicologia num prestigiado seminário baptista do Kentucky, sendo admirado pelo cruzamento que fazia entre a ciência e a religião, com vantagens para ambas. O seu primeiro livro, de 1940, trata do alcoolismo e, com o passar dos anos, Oates apercebeu-se de que a sua compulsão para trabalhar obsessivamente, graças à qual se formara, se doutorara e escrevera tantos livros, não era muito diferente do vício alcoólico dos pacientes que o procuravam. Foi ele que cunhou o termo – e o conceito – de workaholic, o “alcoólico do trabalho”, aplicando-o a si próprio num livro autobiográfico de 1971, intitulado Confessions of aWorkaholic. Em
Oxford English Dictionary quase mística, de soft skills, um “dom inato” ou “chama interior” que uns teriam, e outros não, para o desempenho de certas tarefas. No acesso aos empregos, a “entrevista pessoal”, com “histórias de vida”, passou a valer muito mais do que a formação académica, as qualificações e o currículo de cada qual. Entrou-se assim no maior dos subjectivismos, numa twilight zone em que a competência e as aptidões técnicas eram postergadas em favor da adivinhação do “talento”, isto é, da forma mais ou menos eficaz com que os candidatos a empregos, fosse qual fosse a sua experiência ou as suas qualificações, conseguiam seduzir os painéis dos entrevistadores. Triunfaram os aldrabões, portanto. Ainda não sabemos ao certo que efeitos isso teve, e tem, na vida das nossas empresas e nas economias como um todo, mas o facto é que os gestores “talentosos”, muitos deles sem formação e sem escrúpulos, não só não evitaram a crise de 2008 como a potenciaram em larga escala. Envolvida em crimes na auditoria da Enron, a Arthur Andersen LLP, um colosso de “talentos”, uma das maiores empresas do mundo, fundada em 1913, teve de fechar as portas e sair de cena, com detenções e prisões. Em resultado disso, 85 mil pessoas perderam o emprego.
Por outro lado, e mais decisivamente, o trabalho e a remuneração são, nos nossos dias, realidades cada vez mais distantes. A tendência para remunerar os gestores não apenas com salários mas, acima de tudo, com acções, participações sociais e o diabo que o valha faz que, por um lado, o que cada um leva para casa ao final do ano não só é pouco escrutinável como pouca ou nenhuma relação tem com o trabalho que fez ou os resultados que alcançou, dando-se mesmo o caso bizarro de gestores receberem bónus pela liderança de empresas que, sob a sua gestão e por causa dela, tiveram resultados piores do que o esperado e acumularam prejuízos injustificados; por outro lado, a quebra da ligação entre trabalho e remuneração faz perder o norte e o bom senso e permite taras como esta: em 1965, os gestores