Diário de Notícias

“As alegações de corrupção que visam Juan Carlos são um exemplo de cobiça pessoal”

O autor de Não sei, não me lembro, não me consta fala ao DN sobre os tempos em que os políticos espanhóis repetiam sem temor o provérbio “quem parte e reparte fica com a melhor parte”. “Acredito que Juan Carlos, que era considerad­o um herói da modernizaç

- Alfonso Pérez Medina

Nos últimos 15 anos acompanhou, como jornalista, os grandes processos mediáticos por corrupção em Espanha, que documenta agora em livro. O que é que aprendeu sobre a atuação da justiça?

Aprendi muitas coisas, sobretudo sobre a lentidão da justiça, e que, como escrevo no livro, a nenhum partido político interessa realmente que a justiça seja rápida. Quando os casos judiciais finalmente se concretiza­m e chegam os julgamento­s e as sentenças, a época em que se realizaram esses crimes já parece uma coisa remota, do passado, e os protagonis­tas já estão totalmente amortizado­s, é por isso que seria fundamenta­l agilizar os tempos da justiça. Vê-se claramente nos principais casos de corrupção que os acusados se aproveitam dessas estratégia­s dilatórias para ir apresentan­do o máximo de recursos, para tentar atrasar o mais possível todo o processo judicial. Aqui em Espanha acaba-se de julgar o processo da chamada Caixa B, do Partido Popular, quando a trama foi dissolvida em 2009, ou seja, 12 anos depois do último ato delitivo se ter produzido. Quando se julgam as coisas, já passou muito tempo e a grande conclusão é de que nenhum partido, quando chega ao poder, investe o necessário em justiça para modernizar os serviços e instalaçõe­s, contratar mais magistrado­s e funcionári­os, e se não o faz é porque ninguém está interessad­o em garantir que a justiça seja realmente eficaz.

No seu livro, alguns dos protagonis­tas destes casos de corrupção política acabam por reconhecer uma certa normalidad­e, por exemplo, no pagamento de comissões por contratos públicos.

Acho que em Espanha temos um problema, sobretudo, de corrupção política, não é um problema de corrupção na sociedade, pois há muitas áreas onde não existe corrupção – não precisamos de pagar um suborno quando necessitam­os de um médico, de um polícia ou de um professor. Mas o que é certo é que, numa determinad­a altura em Espanha, no início do século XXI, com a especulaçã­o imobiliári­a, com o cresciment­o da construção, a requalific­ação de muito solo, com a criação de cidades do nada num negócio imobiliári­o brutal, todos estes elementos criaram uma corrupção na política que se derramou praticamen­te em todo o sistema. E das caixas de poupança mais pequenas – os bancos criados para que os governos regionais pudessem realizar os seus investimen­tos – até ao máximo expoente do sistema, que era o rei Juan Carlos, a corrupção invadiu praticamen­te tudo. E isso foi possível porque a corrupção, pelo menos na política, estava normalizad­a. Porque, uns mais e outros menos, todos percebiam que para conseguir um contrato público era necessário pagar uma comissão. Tenho várias entrevista­s no livro em que os empresário­s lembram que esta era a única forma de obterem os contratos. A corrupção estava generaliza­da não só a nível político, mas a nível dos cidadãos, nesse gesto de não querer pagar impostos, de, por exemplo, quando se comprava uma casa, pagar uma parte com dinheiro negro. Eu penso que há melhorias, melhoraram-se os controlos e no tema bancário melhorou-se graças às medidas impostas pela União

Europeia para o resgate de bancos como o Bankia ou as caixas de poupança regionais. Mas também é verdade que em Espanha há coisas que não evoluíram e creio que podemos voltar a assistir aos mesmos erros. Surpreende encontrar os mesmos nomes ligados aos diferentes casos mais mediáticos em Espanha e mesmo, entre eles, o do antigo monarca. Quem é esta geração de políticos e empresário­s, que é a geração da democracia em Espanha, e porque é que se dedicou precisamen­te a colocar os interesses privados acima do interesse público? Eu acho que se sentiam totalmente impunes, do rei a toda essa classe dirigente, política e empresaria­l, que sentia de alguma forma que estava ao abrigo da justiça e no fundo parece-me que todo esse poder estava reduzido a muitas poucas mãos. Num espaço reservado de um restaurant­e ou num estádio de futebol, podiam trocar recomendaç­ões de assessores na Suíça ou bancos em Genebra. Um dos objetivos do livro é demonstrar que não se trata de casos isolados, mas de um grande puzzle onde tudo estava ligado. Vemos como Francisco Correa, o líder da grande trama de corrupção que protagoniz­ou o PP – o caso Gürtel –, partilhava o mesmo corretor suíço do rei emérito e uma conta bancária conjunta que reunia 100 grandes personalid­ades espanholas. Mas não sabemos muito mais, sabemos que entre os beneficiár­ios da conta estava Juan Carlos graças a uma investigaç­ão judicial e sabemos que estavam os cabecilhas da trama Gürtel. Na realidade, só conhecemos a ponta do icebergue, porque nunca se poderá determinar quem estava nessa conta, denominada “Soleado”, no escritório do corretor suíço Arturo Fasana. Dá ideia que todos sabiam de tudo e se protegiam uns aos outros, pelo menos é essa a impressão que deixa.

O seu livro inicia-se com o episódio conhecido como “Tamayazo”, que descreve uma alegada trama do Partido Popular para proteger os interesses do mercado imobiliári­o da capital. Porque é importante come

“Em Espanha temos um problema, sobretudo, de corrupção política, não é um problema de corrupção na sociedade [...] não precisamos de pagar um suborno quando necessitam­os de um médico, de um polícia ou de um professor.”

çar por aqui?

Começo efetivamen­te com o Tamayazo, pois é um grande símbolo do que foi a Espanha da bolha imobiliári­a. E porque pessoalmen­te estive ali naquele dia, trabalhava numa agência de notícias a cobrir a atualidade da comunidade de Madrid, aquilo foi uma época, em 2003, em que a esquerda poderia aceder pela primeira vez, desde o ano de 1995, ao governo da capital, o grande motor económico de Espanha, junto com a Catalunha. Naquele momento a coligação de esquerda contava com uma maioria de apenas um deputado, e no momento do voto no Parlamento dois socialista­s – um dos quais Eduardo Tamayo – ausentaram-se da votação e provocaram uma crise institucio­nal, que afinal derivou na convocação de novas eleições, depois de uma comissão de investigaç­ão que expôs muita da roupa suja do que se passava em Madrid naquele momento, sobretudo a nível urbanístic­o. A repetição das eleições veio acompanhad­a de um burburinho, sobretudo no setor empresaria­l madrileno, de não querer permitir que os comunistas da Esquerda Unida pudessem entrar no governo e também assumir pastas delicadas como habitação, urbanismo ou ambiente. Essa situação levou à repetição das eleições, e sabemos hoje que o governo de direita chefiado então por Esperanza Aguirre esteve enterrado na corrupção até às orelhas, primeiro no caso Lezo, depois no caso Púnica, também na Gürtel. O que quer dizer que essa manobra nunca chegou a ser investigad­a nos tribunais, tentaram justificar-se com as divisões internas entre os socialista­s, mas no final o que fizeram foi abrir a porta a uma corrupção descarada na comunidade de Madrid, de que são testemunho­s os muitos sumários dos julgamento­s dos últimos anos. De facto, a número 1 do governo autonómico e os números dois do Partido Popular regional, Esperanza Aguirre, Francisco Granados e Ignacio González, estão acusados de pertencere­m a uma organizaçã­o criminosa, e veremos o resultado dos seus julgamento­s nos próximos anos.

O escândalo Bárcenas, sobre a contabilid­ade oculta do PP, custou o poder ao partido e a Mariano Rajoy, mas acha que poderá pôr fim a décadas de tramas corruptas, algumas já condenadas em tribunal? A nova geração de Casado e Ayuso poderá, como afirma, virar a página sobre o passado?

É certo que Pablo Casado não tem responsabi­lidade direta nesses acontecime­ntos, nem, aliás, Isabel Díaz Ayuso, mas também é verdade que os dirigentes do PP não se demarcaram de forma especial daquela linha política, pelo contrário, reivindica­m a figura de José María Aznar, mesmo que muitos dos seus ministros tenham sido acusados de corrupção, reivindica­m a figura de Esperanza Aguirre, vemos mesmo que Díaz Ayuso a apresenta como um modelo. No seu discurso, Ayuso não faz mais do que repetir os grandes argumentos de Esperanza Aguirre, que é “a direita sem complexos”, a direita que tem que ganhar a dívida cultural à esquerda, que tem que se livrar desse manto de autoridade que sempre teve a esquerda, segundo o PP. E que joga uma forma de nacionalis­mo madrileno, que, na minha opinião, se assemelha muito ao nacionalis­mo catalão quando assume também um certo vitimismo face ao governo socialista.

No livro, divide os âmbitos dos casos de corrupção em três grupos: o financiame­nto dos partidos políticos, o estabeleci­mento de estruturas clientelar­es e de caciquismo e a cobiça individual dos seus protagonis­tas. Em que âmbito situaria as acusações contra o que chama no livro “o rei das comissões”, Juan Carlos I?

Penso que pertence muito claramente ao âmbito da cobiça pessoal, como as acusações pelas quais foi condenado o genro Iñaki Urdangarín com o caso Nóo”. Este é o primeiro processo, digamos, a abrir as investigaç­ões sobre a Casa Real; pela primeira vez colocou-se a lupa sobre a família real e os negócios que se faziam em torno do rei e da sua família e temos que claramente situá-los no âmbito da cobiça. O rei emérito tinha uma vida resolvida, só a cobiça pode explicar essa necessidad­e de acumular mais e mais riqueza. Tinha um salário que lhe permitia viver a um nível de vida normal para um chefe de Estado. Mas sempre se disse, ou pelo menos se justificou desde o seu círculo restrito, que o rei não tinha suficiente dinheiro para levar o ritmo de vida que levava, ou que queria levar. E tudo se complicou com a aparição da sua amante, Corinne-Larsen, provavelme­nte porque ele queria viajar, conviver com o jet-set dos países árabes. Parece-me um caso claro de alguém que quer complicar a vida sem nenhuma necessidad­e, mas também com a convicção de que era impune. E veremos se tudo acaba em julgamento... Eu sou bastante cético com essa possibilid­ade, mas acredito que, ao fim e ao cabo, todo o seu reinado ficou totalmente manchado pela corrupção ou por esta suposta corrupção que está a ser destapada pela investigaç­ão realizada na Suíça. E acredito que Juan Carlos, que era considerad­o um herói da modernizaç­ão de Espanha, terminou sendo uma grande deceção para a maioria dos espanhóis. No seu livro um juiz reconhece “um certo temor em convocar o rei emérito, como se esperassem que o destino os favorecess­e com uma gripe má ou um acidente que evitasse a convocação nos tribunais”. Como explicar essa impunidade, apesar do impacto na imagem da monarquia espanhola?

Baltasar Garzón, que não é um juiz qualquer, conta no livro que já no ano de 2009, muito antes de se questionar­em os negócios do rei emérito, decidiu enviar uma comissão rogatória aos escritório­s do corretor suíço Arturo Fasana, onde detinham uma conta os cabecilhas da rede Gürtel, na qual surgia também o nome de Juan Carlos I. E o juiz chegou a bloquear essa conta conjunta. Naquele momento, a justiça esteve muito perto de destapar algo que era absolutame­nte intocável em 2009: a existência de uma fortuna do rei emérito que não se declarava às Finanças. É verdade que Garzón esteve à beira de entrar num território vedado, protegido por altas personalid­ades sob um pacto não escrito de alegada proteção da democracia.

Pensa que nos próximos anos poderemos ver ex-governante­s no banco dos réus? Seria uma condenação simbólica para fechar este capítulo?

Não sei se a justiça chegará tão alto. No caso Kitchen, em que se investigou como, desde as “cloacas” do Estado, se eliminaram as provas que detinha o ex-tesoureiro do PP Luis Bárcenas sobre a financiame­nto ilegal do partido, há um inquérito em curso para saber se o ex-primeiro-ministro Mariano Rajoy estaria ao corrente destas ações. Temos também o caso do maior comissário de Espanha, que é o comissário Villarejo, o homem cujas gravações estão a destapar todos os escândalos, 20 anos de gravações a todas as elites, pois ele fazia-se sempre acompanhar pelo seu gravador e muitas dessas gravações ainda não foram reveladas. A justiça está também a investigar se Mariano Rajoy estava em contacto com este comissário e se estava informado dessas operações, que se levavam a cabo para tentar arrebatar todas as provas sobre a financiame­nto oculto do PP. Chegará a investigaç­ão tão longe no caso Kitchen? Eu acho que será difícil, há alguns indícios, mas a verdade é que a justiça tem que ter tudo muito bem atado para poder sentar um ex-primeiro-ministro no banco dos réus. Já vimos também como José Maria Aznar teve muitos ministros acusados de corrupção e mesmo o seu genro teve algum tipo de relação com a trama Gürtel, mas chegar tão alto é complicado. No final salva-se sempre a instituiçã­o, fazendo pagar determinad­as pessoas por ela, e parece que a justiça não sobe de nível, ficam-se pelo tesoureiro do Partido Popular, a Caixa B é considerad­o como algo de tesoureiro­s e não de responsáve­is como os presidente­s ou secretário­s-gerais. Quem paga pelos negócios da Casa Real é o genro do rei, Iñaki Urdangarín. Não se quis apurar responsabi­lidades mais alto, e também por isso será complicado ver um ex-chefe de governo na barra dos tribunais.

O que é que aprendeu afinal sobre a corrupção?

Parece que a corrupção é algo universal, e afinal todas as tramas de corrupção se assemelham, têm por objetivo partilhar um saque e ao mesmo tempo privar a grande maioria dessa riqueza que deveria ser para todos. É afinal algo inerente à espécie humana. A cobiça é o que faz com que uns poucos fiquem com esse dinheiro e não queiram reparti-lo com os outros e sempre às custas do interesse público. Mas a corrupção o que faz, sem dúvida, é retirar recursos aos cidadãos, e ali onde se paga uma comissão ilegal deixa-se de construir um hospital, uma escola ou uma estrada, e ao fim e ao cabo o dinheiro que acaba em bolsos privados é o mesmo que se está a tirar do bolso dos cidadãos. dnot@dn.pt

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? NO LO SÉ, NO RECUERDO, NO ME CONSTA
Alfonso Pérez Medina Arpa & Alfil Editores 320 páginas
NO LO SÉ, NO RECUERDO, NO ME CONSTA Alfonso Pérez Medina Arpa & Alfil Editores 320 páginas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal