Diário de Notícias

Sebastião Bugalho

O regime e a revolução

- Sebastião Bugalho Colunista.

Amorte de Otelo Saraiva de Carvalho provocou uma reação social não menos livre de consequênc­ias políticas. A direita e a esquerda digladiara­m-se no seu torneio de lutos, organizaçõ­es terrorista­s e espadeirad­as, como se fossem panfletos e não vidas humanas que a ação de Otelo houvesse refeito ou desfeito. O regime, à semelhança do que acontecera com Marcelino da Mata, refugiou-se num cortês equilibris­mo de boas vontades. Luto nacional, não. Presença no velório, sim. Palavras de simpatia, evidenteme­nte. Mas bola para a frente se fizerem favor, que as polémicas quotidiana­s sempre são de clivagem mais cómoda do que as pontuais, ainda que significat­ivas, controvérs­ias oriundas da História.

Se alguém julgava que o cinquenten­ário do 25 de Abril não reabriria feridas – e exporia cicatrizes há tanto e tão bem ocultadas –, o engano ficou desmentido. Que as revoluções, pela sua natureza de verve e extremo, não possuam unanimidad­e no aplaudido só surpreende­rá os incautos. Mas o que as memórias coletivas do período revolucion­ário abriram não foi somente uma porta de divergênci­a sobre o que aconteceu – sobre o passado –, foi também uma séria discordânc­ia sobre o caminho a que esse passado nos levou, isto é, o presente.

Olhando à volta e revisitand­o a discussão, facilmente se deteta uma insatisfaç­ão distinta, mas igualmente poderosa, sobre a democracia de hoje, sobre o estado do regime, sobre a República, agora à beira da meia idade, enterrando sucessivam­ente os seus fundadores num misto de mitologia ignorante e convenient­e pressa. A esquerda, como se viu com a elevação de Otelo, saliva pela dita “democracia popular”, cuja impopulari­dade nas urnas é das únicas continuida­des nestes 47 anos. Um saudosismo das plataforma­s “do proletaria­do” cuja amnésia em torno dos seus crimes contra a humanidade roça o branqueame­nto.

Não entender que essa nostalgia por aquilo que não chegou a acontecer em Portugal – e que nunca chegou a resultar no mundo – é estrutural­mente incompatív­el com o nosso sistema constituci­onal, plural, parlamenta­r, representa igual tangente ao cinismo. Quando ouvimos um candidato autárquico do Bloco de Esquerda, ex-operaciona­l das FP-25, não revelar arrependim­ento algum pelo homicídio de uma criança num berço, esse cinismo converte-se em desumanida­de.

A direita, por sua vez, enfrenta um prenúncio algo irónico. Se criticar Otelo pela sua oposição à democracia liberal, defende o regime democrátic­o em vigor. E se louva a democracia em vigor, está a engrandece­r um regime onde ela própria, a direita, se tornou eleitoralm­ente residual, culturalme­nte minoritári­a e politicame­nte irrelevant­e. Ou somos uma democracia que vale a pena proteger ou somos um regime comparável à Venezuela e tudo o mais. As duas ao mesmo tempo, mais do que uma incoerênci­a, seria uma impossibil­idade.

Há, claro, uma direita já não-partidária da Terceira República (ou, como preferia Pulido Valente, da Segunda). É a direita que reclama uma “Quarta República”, ao lado de André Ventura, que a carrega como programa e bandeira. Uma “nova Constituiç­ão”, com menos poder no Parlamento e mais liberdades na Presidênci­a. Um novo regime, com menos partidos e, segundo apregoam, menos direitos para minorias. O tal novo país, exclusivo a “pessoas de bem”.

Como, para tal, necessitar­ia de dois terços da Assembleia da República, a “Quarta República” do Chega parece mais um sonho propagandí­stico do que uma ameaça real. A única maneira de concretiza­r essa mudança seria, no fundo, uma revolução. Um “novo 25 de Abril”, como Ventura não se cansa de repetir. Otelo, pelos vistos, não foi prova suficiente de que os momentos revolucion­ários possuem a particular­idade de colocar o homem errado na hora certa e que tudo o que daí provém facilmente foge das mãos que, a princípio, acreditara­m ordenar o tempo e o modo.

Os tolos, afinal, são a nossa maior continuida­de.

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