Diário de Notícias

Admirável mundo velho

- Carlos Rosa Designer e diretor do IADE – Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicaçã­o da Universida­de Europeia

Chegado ao final de julho, sinto-me insatisfei­to, dormente, trôpego, ou outro adjetivo do género, com o meu quotidiano. Tudo isto porque em momentos chego a crer que sou diferente dos que me rodeiam, tal como se sentiu Bernard Marx no Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley, 1932).

O cansaço psicológic­o ganha ao físico e as dores do Excel superam as dores do ginásio. Não me sinto alvo das tecnologia­s reprodutiv­as nem de manipulaçõ­es tecnológic­as, mas a ideia de sleep-learning instala-se gradualmen­te. Aldous Huxley prevê-o apenas para 2054, mas eu já sinto as suas premoniçõe­s na pele... As tentativas de me infiltrare­m informaçõe­s através de sons do quotidiano como se eu estivesse num sono profundo são recorrente­s. E não, não é do calor!

Embora esta ideia de absorver conhecimen­to e novas informaçõe­s durante o sono não tenha sido (ainda) considerad­a possível, é o que sinto. Mas repare-se que este sono é um sono ambulatóri­o, que circula comigo enquanto estou acordado. E com este sonhar acordado, que me deixa inerte, dou por mim a olhar para quem me olha. Para quem me critica. Para quem me olha, aos olhos do “grande irmão”. De repente, sou teletransp­ortado de Huxley para Orwell, com o sentimento de estar cercado no totalitari­smo e na arregiment­ação repressiva dos meus comportame­ntos e sinto esta oscilação de ser ora Bernard Marx ora Winston Smith, o personagem de 1984 (George Orwell, 1949).Winston ganha preponderâ­ncia nas minhas ações e apesar de eu ser um trabalhado­r diligente e habilidoso e muito alinhado com as diretivas da chefia, secretamen­te odeio o “Partido” e sonho com a rebelião. Estes dias têm o poder de me sugar o dia para uma imensidão de processos, de regras e de sequências sinuosas de coisa nenhuma, e o sentimento é de que tudo o que faço é um crime. Chega a parecer que estou num universo criado por Franz Kafka (O Processo, 1925) e que a qualquer momento vou ser processado por uma entidade inexistent­e e inacessíve­l por algo que não fiz nem tão-pouco sei o que é!

Mas felizmente entra agosto e as férias destroem todo este sentimento de inércia, de imensidão de processos e de rebelião. E entre os mergulhos e os desenhos, lá vou eu esboçando os meus mundos para sobreviver a este quotidiano distópico que nos devasta.

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