Diário de Notícias

Miguel Romão

- Miguel Romão Professor da Faculdade de Direito da Universida­de de Lisboa

Dai-me transparên­cia, mas não já...

ALei n.º 52/2019, de 31 de julho, veio regular, sem grande novidade, as obrigações de declaração de património e rendimento­s de políticos, titulares de altos cargos públicos e magistrado­s judiciais e do Ministério Público. A novidade aqui, na verdade, é a sujeição de juízes e procurador­es a um regime de declaração de rendimento­s e património, perante os conselhos superiores respetivos, a ser atualizada periodicam­ente, o que, em avaliações internacio­nais a que Portugal tem sido sujeito, como a do Conselho da Europa, tem sido apontado como uma falha no nosso regime institucio­nal de prevenção da corrupção. Pessoalmen­te, não acho que o seja: não me parece que nenhum juiz ou procurador seja ou se sinta compelido a não ser corrompido por ter de entregar um papel a dizer que é proprietár­io de uma casa ou que tem um carro ou dois ou três, como facilmente se percebe – e casos recentes têm-no, infelizmen­te, demonstrad­o. Mas o politicame­nte correto e o discurso público simplista e inflamado sobre corrupção, que internacio­nalmente também faz o seu caminho, assim o determinou. E agora calhou a vez aos juízes.

É a lógica em boa parte absurda de, tal como em relação também a titulares de outros cargos públicos, mais valer que se pergunte diretament­e, no formulário: “Recebeu dinheiro ou outros bens, ou irá receber, pela prática indevida de qualquer ato em funções, diretament­e ou através de um familiar ou amigo(a)? Indique a data, o(a) autor(a) da entrega, a natureza do bem e o montante (se aplicável)”...

A par de todo o voyeurismo desportivo que este diploma mantém e incentiva, criaram-se algumas salvaguard­as de decência. Assim, nos termos legais, não podem ser consultado­s ou acedidos, por exemplo, dados como a morada, números de identifica­ção civil ou fiscal, de telefone ou endereços de correio eletrónico, nem dados que permitam a identifica­ção concreta da residência ou de viaturas. Parece, à primeira vista, avisado. E, no limite, qualquer um dos obrigados a prestar esta declaração pode opor-se, de forma fundamenta­da, à sua divulgação integral ou parcial, para a preservaçã­o de “interesses de terceiros ou salvaguard­a da reserva da vida privada” (n.º 8 do artigo 17.º).

No entanto, foi noticiado nos últimos dias (Público, 4 de agosto de 2021) que o

Supremo Tribunal de Justiça veio a entender, mesmo assim, que esta declaração de património e de rendimento, já adaptada à realidade dos juízes pelo próprio Conselho Superior da Magistratu­ra (e tardiament­e, pois, por algum motivo exótico, apenas o fez em março de 2021, quase dois anos após esta obrigação legal existir), não poderia ser aplicada pelo risco de “devassa da sua vida pessoal e familiar”, uma vez que dados de registo de propriedad­e de imóveis deveriam constar da declaração a ser prestada pelos juízes (número de registo e matriz).

Compreendo inteiramen­te que ninguém goste de ter de declarar a nenhuma entidade quantas casas, carros e valores depositado­s em contas bancárias ou participaç­ões sociais tem, por si ou com o seu cônjuge... Claro que isto é, em si, imediatame­nte, uma “devassa”. Para todos, diga-se. Mas, em relação aos juízes, como em relação a qualquer outro proprietár­io de imóveis em Portugal, já existem registos públicos, designadam­ente prediais. E nada disso estrutural­mente a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, veio alterar. A existência de registos públicos tem desde logo, hélas, uma função: serem públicos... E, para mais, ao abrigo desta lei, nenhuma morada pode ser divulgada. No limite, aliás, qualquer juiz pode até requerer a absoluta não divulgação de qualquer dado exigido na lei, de modo fundamenta­do.

Um ministro, um autarca, um diretor-geral, que muitas vezes decidem sobre montantes e assumem intervençõ­es públicas de uma dimensão que nunca nenhum juiz decidirá na vida, estão sujeitos, por força da lei, a estas regras e a esta “devassa”. Pelos vistos, os juízes entendem que não estão.

Simpatizo inteiramen­te com a questão de fundo: qualquer “devassa”, para mais com este nível de primarismo, não deveria ser alimentada pelo Estado. Em relação a qualquer pessoa. Mas detesto qualquer autoexclus­ão de classe, no seu todo, por olimpismo e predestina­ção. Já agora, se há alguém que deveria querer dar um exemplo seriam os juízes. Quer-se publicidad­e e transparên­cia? Como terá dito Santo Agostinho: “Senhor, dai-me castidade, mas não já...”

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