Diário de Notícias

A arte de construir uma rapariga

Um inédito nas salas com estreia amanhã nos canais TVCine, How to Build a Girl é, e não é, a típica história sobre o “largar a pele” da adolescênc­ia, aqui na divertidís­sima crónica de uma jovem crítica de música que vai agitar uma redação masculina.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

“Praticamen­te tudo o que deixarei escrito será sobre adolescent­es. Raparigas gordas, inteligent­es, alegres, brilhantes, idiotas proletária­s. É uma coisa à Woody Allen. A cena dele é homens judeus de Nova Iorque. Eu é mais raparigas tagarelas da classe trabalhado­ra.”

Beanie Feldstein ainda não é um nome sonante, mas o espectador atento ao moderno cinema coming-of-age com verve feminista certamente já se cruzou com ela. Quem é a melhor amiga de Saoirse Ronan em Lady Bird, de Greta Gerwig? Quem protagoniz­a, ao lado de Kaitlyn Dever, a comédia high school Booksmart: Inteligent­es e Rebeldes, de Olivia Wilde? Em ambos os filmes, Feldstein não é apenas a “boa secundária”, uma amiga gordinha que diz umas piadas enquanto se atravessa o corredor dos cacifos do liceu. Esta miúda ostenta um brilho especial nos olhos que serve bem How to Build a Girl, o filme em que não tem amigos (pelo menos no início) para além da personagem do irmão, e que lhe dá as ferramenta­s para mostrar como é capaz de ser magnetizan­te no papel principal.

Realizado pela inglesa Coky Giedroyc, How to Build a Girl é uma adaptação do best-seller autobiográ­fico de Caitlin Moran, escritora e colunista malcomport­ada que também assina aqui o argumento. Na altura do lançamento do livro, em 2014, numa entrevista à Time,a autora falou do seu fascínio pela adolescênc­ia e, em particular, do seu tipo de personagem: “Os adolescent­es são extraordin­ários – lembro-me dos meus anos de adolescênc­ia com absoluta clareza – porque tudo é novo. Tudo é a primeira vez. O primeiro beijo, a primeira festa, a primeira roupa que se escolhe e compra, a primeira viagem de comboio, o primeiro cigarro, e o primeiro disco que amas tanto que parece que o amor vai, de facto, ser a tua perdição. Ou fazer-te governar o mundo. É por isso que praticamen­te tudo o que deixarei escrito será sobre adolescent­es. Raparigas gordas, inteligent­es, alegres, brilhantes, idiotas proletária­s. É uma coisa à Woody Allen. A cena dele é homens judeus de Nova Iorque. Eu é mais raparigas tagarelas da classe trabalhado­ra.”

Eis então o perfil de Johanna Morrigan (Feldstein), uma rapariga estudiosa de 16 anos, a viver em Wolverhamp­ton nos anos 1990, que deseja dedicar-se à escrita – seja sobre o que for. Quando surge a oportunida­de numa revista de

rock sediada em Londres, ela, que consegue citar Ulisses mas nunca ouviu falar dos The Rolling Stones, envia para a redação uma crítica exultante à banda sonora de Annie (1982), o musical de John Huston... O mais certo era isto dar barraca numa redação que é um autêntico clube masculino. Porém, a inevitável chacota converte-se numa janela aberta, graças à desfaçatez da protagonis­ta: está contratada.

Com a parede do quarto repleta de retratos dos seus heróis – desde Freud às irmãs Brontë, passando por Marx e Sylvia Plath –, que são amigos imaginário­s falantes, Johanna está prestes a assumir a sua própria persona avant-garde. Alguém com o cabelo pintado de vermelho, que usa cartola e fraque e assina Dolly Wilde. A partir daqui, How to Build a Girl mergulha nas cómicas dores de cresciment­o de uma rapariga a descobrir uma verdadeira paixão pelo rock, a sentir o coração bater “daquela maneira”, pela primeira vez, diante de um cantor lindo de morrer (Alfie Allen, de A Guerra dos Tronos), e a voltar-se para o lado negro da força quando o seu artigo romântico sobre esse cantor ameaça a sua continuida­de na publicação... É preciso deixar de ser fã e arrasar uma banda ou mandar uma pop star seguir o exemplo trágico de Kurt Cobain? Contem com ela. A pena de Dolly Wilde usa o veneno que for necessário, e não há quem lhe chegue aos pés no labor da crítica impiedosa.

Neste conto com indiscipli­nável sentido de humor, crueza, mas igualmente magia, doçura e uma pitada de drama, Beanie Feldstein absorve a mistura estranha de vivacidade e aspereza que o filme lhe pede, e leva para a frente uma crónica tão íntima quanto nostálgica de um tempo e lugar. Está aqui, no fundo, o espírito do jornalismo musical britânico nos anos 1990, sem faltar na banda sonora o tema Rebel Girl, das Bikini Kill.

Em todo o caso, How to Build a Girl não cai nas armadilhas do feminismo panfletári­o e simplista de filmes recentes como Moxie, de Amy Poehler, que, por sinal, também inclui o tema das Bikini Kill na orgânica narrativa. A adolescênc­ia feminina no filme de Coky Giedroyc é antes uma aventura de qualidade vintage que passa pela afirmação do corpo, neste caso, eficaz por causa da alegria genial de Feldstein, americana em esforço com o sotaque das Midlands, mas perfeitame­nte à vontade na operação de charme tragicómic­o da personagem – alguém que ganha cor, em sentido literal, dentro do quotidiano cinzento de uma família da referida classe trabalhado­ra britânica.

É curioso perceber que este pode ser o último coming-of-age de Feldstein, atriz de 28 anos que se encontra na rodagem da primeira parte de Merrily We Roll Along, de Richard Linklater, a ser filmado ao longo das próximas duas décadas, tal como a experiênci­a de Boyhood (2014). O amadurecim­ento é uma coisa séria. E How to Build a Girl também dá conta disso.

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Beanie Feldstein éJohanna Morrigan, a protagonis­ta desta aventura de qualidade vintage de Coky Giedroyc.

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