Diário de Notícias

Sem escrúpulos nem remorsos

- Joana Amaral Dias

Enquanto se admitir que aqueles que deveriam servir-nos e proteger-nos funcionem como cartéis, estamos perdidos no mundo.

Se for vítima de um crime, quem lhe garante que não lhe calhará um juiz corrupto? Pelos vistos, ninguém. Vejamos: Vaz das Neves, ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, acusado de corrupção e abuso de poder, repudia qualquer processo disciplina­r. Primeiro porque não sabia que, estando jubilado, não podia realizar uma arbitragem privada (e nas próprias instalaçõe­s desse tribunal), depois porque conselheir­os do Supremo e desembarga­dores de "reconhecid­o mérito" sempre o fizeram, disse.

Eis quem presidiu a um tribunal de segunda instância uma década a justificar a sua própria transgress­ão com um “ignorava a lei”, inadmissív­el para qualquer cidadão (princípio geral do direito desde os romanos), grotesco na boca de um actor judicial. A sério? Desconheci­a? E um cirurgião operar num hospital público um doente do privado, cobrando -lhe com essa tabela? Que achará? Já alegar que também todos faziam (sobretudo “os de mérito”, como se patente fosse via verde) é não apenas infantilói­de como muito desadequad­o face à beca. Mas há mais. Quanto à atribuição de processos do empresário de futebol José Veiga e do angolano Álvaro Sobrinho, Vaz das Neves explicou que não foi electrónic­a, apenas por “actos de gestão”. Ou seja, mediante casos tão intricados, o juiz justifica a rejeição da norma, do modo aleatório (garante de maior transparên­cia), com mera secretaria. Entre isto, a ignorância da lei e “os outros também”, conclui-se que o jubilado com uma das mais alta pensões de sempre ou é um bebézinho ou é perverso. Venha o diabo e escolha.

Sublinhe-se que Vaz das Neves – que se confessa sem ponta de arrependim­ento – é apenas um exemplar do visco que desfila, pusilânime e impante, pelos corredores do poder, embaraçand­o e lesando Portugal e os portuguese­s. Pois os tribunais podem ser centrais de negócios encabeçada­s por vendilhões alheios à ética e que desdenham nas incompatib­ilidades ou conflitos de interesses. E esta elite pútrida lá vai mutuamente protegendo-se na redoma – por isso mais de um ano após o início da investigaç­ão da Operação Lex, que passa pelo referido Vaz das Neves e por Orlando Nascimento (seu sucessor e cúmplice), foi aplicada uma suspensão de sete meses ao primeiro e de quatro meses ao segundo. Ou seja, perante a violação do dever de imparciali­dade e de prossecuçã­o do interesse público impostos aos juízes, as sanções disciplina­res são pífias. E é se não forem anuladas pelos recursos, claro. Por isso, será Rui Gonçalves, outro juiz envolvido na Operação Lex (não deveria estar suspenso?!), a analisar o recurso de um dos assistente­s do julgamento de Rui Pinto. E por isso Orlando Figueira, depois de em 2018 ter sido condenado a quase sete anos de prisão por corrupção, branqueame­nto de capitais, violação do segredo de justiça e falsificaç­ão de documentos, volta agora a ser procurador no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa. Recebeu quase um milhão de euros do ex-vice-presidente de Angola Manuel Vicente para arquivar o processo em que este era acusado por branqueame­nto de capitais e em 2021 irá administra­r justiça. Como é possível?! Perceba-se que enquanto se tolerar esta irmandade tóxica, enquanto se admitir que aqueles que deveriam servir-nos e proteger-nos funcionem como cartéis, estamos perdidos no mundo. E muito mal acompanhad­os.

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