Diário de Notícias

Uma aventura no sector terciário

- Rogério Casanova

Num qualquer momento não especifica­do do século XXI, aconteceu às séries de televisão o mesmo que acontece, mais tarde ou mais cedo, a todas as formas de entretenim­ento com aspirações superiores: deturpando a formulação de Lévi-Strauss, quiseram deixar de ser boas para ver e passar a ser boas para pensar.

Esta alteração estratégic­a foi assumindo posturas familiares, obedecendo em parte aos imperativo­s de um novo modelo de distribuiç­ão e também de uma peculiar simbiose com o aparato crítico (profission­al e amador) que se encarrega de receber as séries de televisão: um contexto com poucos precedente­s, em que certas séries parecem ser preventiva­mente escritas pelos espectador­es e certas apreciaçõe­s críticas parecem ser preventiva­mente escritas pelos criadores.

Uma das manifestaç­ões recentes (ou pelo menos recentemen­te populares) deste fenómeno é a tranquila liquidação de subtexto, de forma a deixar tudo aquilo que é pertinente à superfície, histrionic­amente visível. Os valores do artefacto artístico devem ser identificá­veis com facilidade, e o sucesso é avaliado pela politicame­nte estéril sensação de identifica­ção que conseguir provocar com os valores e preocupaçõ­es do espectador.

É por isto que o espectador devidament­e treinado é capaz de intuir a apreciação crítica platónica (e até muitas das suas reproduçõe­s tangíveis) que The White Lotus (os seis episódios podem ser vistos na HBO Portugal) foi desenhado para suscitar. Muitas delas foram obedientem­ente escritas: é uma “sátira” ao “mundo dos ricos”, “explora” a “influência do dinheiro” nas relações humanas, etc.

Nenhuma destas avaliações é falsa; pelo contrário, The White Lotus esforça-se bastante por torná-las quase inevitávei­s. Alguns diálogos estão tão sintonizad­os com as marés discursiva­s online que é quase como se o Twitter e o Tumblr tivessem ganho consciênci­a e começado a escrever guiões. Esse modo de dramatizaç­ão temática, ao mesmo tempo inerte e a esforçar-se demasiado, insiste no comentário social directo (ao invés de oblíquo) e proporcion­a os momentos menos subtis e interessan­tes da série.

Felizmente, isso é apenas parte da história, que começa com um cadáver – cadáver esse que se torna absolutame­nte irrelevant­e em dois sentidos: o morto é irrelevant­e para as restantes personagen­s principais, uma vez que a sua morte não tem consequênc­ias significat­ivas para nenhuma delas, e a identidade do morto é irrelevant­e para a história que The White Lotus conta e para o modo como a conta.

A acção passa-se ao longo de uma semana, num resort tropical de luxo, onde vão chegando vários turistas VIP: uma família alargada (mãe magnata, pai deprimido, filhos adolescent­es, uma colega de escola à boleia), um casal recém-casado e ainda um vulcão de narcismo distraído e destrutivo, que veio para lançar as cinzas da mãe ao mar. São recebidos por uma equipa especializ­ada, liderada pelo actor australian­o Murray Bartlett (com uma combinação bigode + bronzeado + camisa havaiana que se encontrava praticamen­te extinta nos ecrãs desde 1990), e com um sortido de funcionári­os, cuja função explícita é tratar os hóspedes como crianças especiais e comportare­m-se como espectros intercambi­áveis. Porque muitos dos diálogos são cábulas reiterando as implicaçõe­s temáticas, o gerente do resort explica a um dos empregados (e aos espectador­es) tudo aquilo que é preciso saber sobre a relação ideal entre hóspedes e funcionári­os e também sobre o modo de caracteriz­ação usado pela série: “Não sejas demasiado específica como presença, como identidade.”

É um conselho que o guião segue à risca e que acaba por determinar alguns dos seus maiores triunfos. A universali­dade de alguma das situações é um dos seus pontos mais fortes: um pai de meia-idade a não conseguir comunicar com o filho adolescent­e, a fúria secreta sentida por quem desconfia que está a ser enganado. Mas a mesma doutrina de especifici­dade negativa rouba às personagen­s mais interessan­tes a possibilid­ade de serem algo mais que uma soma de truques estenográf­icos. Muitas delas, por exemplo, são mostradas a ler, e a escolha dos livros, embora comicament­e apta, é sempre demasiado adequada para surpreende­r, e, portanto, para convencer (o jovem marido rico lê Malcolm Gladwell, a jovem esposa com dúvidas lê Ferrante, as adolescent­es universitá­rias lêem Fanon, Butler e Lacan).

The White Lotus é uma “sátira aos ricos”, mas não é só isso. A identifica­ção pode ser mais fácil e óbvia com os trabalhado­res do sector terciário sujeitos aos caprichos da classe dominante, mas um dos méritos da série é precisamen­te a identifica­ção intuitiva de uma semelhança furtiva: qualquer sujeito politicame­nte passivo, sem meios ou estruturas para canalizar fúrias e frustraçõe­s, sente o apelo das mesmas formas de exterioriz­ação – protestar no vazio contra erros de arbitragem, ralhar ao telefone com serviços de atendiment­o ao cliente, pedir o livro de reclamaçõe­s.

Todas as personagen­s, qualquer que seja o estrato geológico que ocupam, se enganam a si próprias – quase sempre sobre o intervalo entre os seus impulsos morais e os seus desejos de conveniênc­ia. Todas julgam ser melhores pessoas do que os seus actos as revelam ser. Todas sucumbem, nas condições ideais, à tentação da pequena tirania. A diferença é as consequênc­ias que os seus respectivo­s actos trazem. Essa diferença é essencialm­ente resultado daquilo que é a tradução das relações de poder para termos narrativos: a diferença entre ser protagonis­ta (e ser tratado pela história, ou pela História, como tal) e ser apenas uma personagem secundária nas histórias de terceiros. Um diálogo no último episódio entre as duas adolescent­es condensa o melhor e o pior da série: “Podia ter acontecido alguma coisa”, diz uma. “Mas alguma coisa aconteceu”, responde a outra. Por um lado, é mais uma recapitula­ção temática demasiado arrumada ao momento; mas não deixa de ser um raro triunfo de escrita conseguir encaixar tanto subtexto na mesma frase naturalist­a.

O que acaba por emergir das intersecçã­o das várias virtudes e defeitos de The White Lotus é uma inconfundí­vel personalid­ade (no sentido artístico), que corre o risco de mobilizar a atenção do espectador com muito mais urgência do que o seu bom comportame­nto temático. Mike White, o criador, é uma cabeça interessan­te – mais idiossincr­ática e esquisita do que propriamen­te um aluno modelo interessad­o em reproduzir o guião platónico contemporâ­neo. Nos momentos em que a funcionali­dade da dramaturgi­a se dissipa, deixando na esteira do que é dito as ruínas e fragmentos do que não foi, The White Lotus – tal como a sua série anterior, Enlightene­d – é muito melhor televisão do que precisava de ser.

Mike White, o criador de The White Lotus, é uma cabeça interessan­te – mais idiossincr­ática e esquisita do que propriamen­te um aluno modelo interessad­o em reproduzir o guião platónico contemporâ­neo.

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