Uma aventura no sector terciário
Num qualquer momento não especificado do século XXI, aconteceu às séries de televisão o mesmo que acontece, mais tarde ou mais cedo, a todas as formas de entretenimento com aspirações superiores: deturpando a formulação de Lévi-Strauss, quiseram deixar de ser boas para ver e passar a ser boas para pensar.
Esta alteração estratégica foi assumindo posturas familiares, obedecendo em parte aos imperativos de um novo modelo de distribuição e também de uma peculiar simbiose com o aparato crítico (profissional e amador) que se encarrega de receber as séries de televisão: um contexto com poucos precedentes, em que certas séries parecem ser preventivamente escritas pelos espectadores e certas apreciações críticas parecem ser preventivamente escritas pelos criadores.
Uma das manifestações recentes (ou pelo menos recentemente populares) deste fenómeno é a tranquila liquidação de subtexto, de forma a deixar tudo aquilo que é pertinente à superfície, histrionicamente visível. Os valores do artefacto artístico devem ser identificáveis com facilidade, e o sucesso é avaliado pela politicamente estéril sensação de identificação que conseguir provocar com os valores e preocupações do espectador.
É por isto que o espectador devidamente treinado é capaz de intuir a apreciação crítica platónica (e até muitas das suas reproduções tangíveis) que The White Lotus (os seis episódios podem ser vistos na HBO Portugal) foi desenhado para suscitar. Muitas delas foram obedientemente escritas: é uma “sátira” ao “mundo dos ricos”, “explora” a “influência do dinheiro” nas relações humanas, etc.
Nenhuma destas avaliações é falsa; pelo contrário, The White Lotus esforça-se bastante por torná-las quase inevitáveis. Alguns diálogos estão tão sintonizados com as marés discursivas online que é quase como se o Twitter e o Tumblr tivessem ganho consciência e começado a escrever guiões. Esse modo de dramatização temática, ao mesmo tempo inerte e a esforçar-se demasiado, insiste no comentário social directo (ao invés de oblíquo) e proporciona os momentos menos subtis e interessantes da série.
Felizmente, isso é apenas parte da história, que começa com um cadáver – cadáver esse que se torna absolutamente irrelevante em dois sentidos: o morto é irrelevante para as restantes personagens principais, uma vez que a sua morte não tem consequências significativas para nenhuma delas, e a identidade do morto é irrelevante para a história que The White Lotus conta e para o modo como a conta.
A acção passa-se ao longo de uma semana, num resort tropical de luxo, onde vão chegando vários turistas VIP: uma família alargada (mãe magnata, pai deprimido, filhos adolescentes, uma colega de escola à boleia), um casal recém-casado e ainda um vulcão de narcismo distraído e destrutivo, que veio para lançar as cinzas da mãe ao mar. São recebidos por uma equipa especializada, liderada pelo actor australiano Murray Bartlett (com uma combinação bigode + bronzeado + camisa havaiana que se encontrava praticamente extinta nos ecrãs desde 1990), e com um sortido de funcionários, cuja função explícita é tratar os hóspedes como crianças especiais e comportarem-se como espectros intercambiáveis. Porque muitos dos diálogos são cábulas reiterando as implicações temáticas, o gerente do resort explica a um dos empregados (e aos espectadores) tudo aquilo que é preciso saber sobre a relação ideal entre hóspedes e funcionários e também sobre o modo de caracterização usado pela série: “Não sejas demasiado específica como presença, como identidade.”
É um conselho que o guião segue à risca e que acaba por determinar alguns dos seus maiores triunfos. A universalidade de alguma das situações é um dos seus pontos mais fortes: um pai de meia-idade a não conseguir comunicar com o filho adolescente, a fúria secreta sentida por quem desconfia que está a ser enganado. Mas a mesma doutrina de especificidade negativa rouba às personagens mais interessantes a possibilidade de serem algo mais que uma soma de truques estenográficos. Muitas delas, por exemplo, são mostradas a ler, e a escolha dos livros, embora comicamente apta, é sempre demasiado adequada para surpreender, e, portanto, para convencer (o jovem marido rico lê Malcolm Gladwell, a jovem esposa com dúvidas lê Ferrante, as adolescentes universitárias lêem Fanon, Butler e Lacan).
The White Lotus é uma “sátira aos ricos”, mas não é só isso. A identificação pode ser mais fácil e óbvia com os trabalhadores do sector terciário sujeitos aos caprichos da classe dominante, mas um dos méritos da série é precisamente a identificação intuitiva de uma semelhança furtiva: qualquer sujeito politicamente passivo, sem meios ou estruturas para canalizar fúrias e frustrações, sente o apelo das mesmas formas de exteriorização – protestar no vazio contra erros de arbitragem, ralhar ao telefone com serviços de atendimento ao cliente, pedir o livro de reclamações.
Todas as personagens, qualquer que seja o estrato geológico que ocupam, se enganam a si próprias – quase sempre sobre o intervalo entre os seus impulsos morais e os seus desejos de conveniência. Todas julgam ser melhores pessoas do que os seus actos as revelam ser. Todas sucumbem, nas condições ideais, à tentação da pequena tirania. A diferença é as consequências que os seus respectivos actos trazem. Essa diferença é essencialmente resultado daquilo que é a tradução das relações de poder para termos narrativos: a diferença entre ser protagonista (e ser tratado pela história, ou pela História, como tal) e ser apenas uma personagem secundária nas histórias de terceiros. Um diálogo no último episódio entre as duas adolescentes condensa o melhor e o pior da série: “Podia ter acontecido alguma coisa”, diz uma. “Mas alguma coisa aconteceu”, responde a outra. Por um lado, é mais uma recapitulação temática demasiado arrumada ao momento; mas não deixa de ser um raro triunfo de escrita conseguir encaixar tanto subtexto na mesma frase naturalista.
O que acaba por emergir das intersecção das várias virtudes e defeitos de The White Lotus é uma inconfundível personalidade (no sentido artístico), que corre o risco de mobilizar a atenção do espectador com muito mais urgência do que o seu bom comportamento temático. Mike White, o criador, é uma cabeça interessante – mais idiossincrática e esquisita do que propriamente um aluno modelo interessado em reproduzir o guião platónico contemporâneo. Nos momentos em que a funcionalidade da dramaturgia se dissipa, deixando na esteira do que é dito as ruínas e fragmentos do que não foi, The White Lotus – tal como a sua série anterior, Enlightened – é muito melhor televisão do que precisava de ser.
Mike White, o criador de The White Lotus, é uma cabeça interessante – mais idiossincrática e esquisita do que propriamente um aluno modelo interessado em reproduzir o guião platónico contemporâneo.