Diário de Notícias

A pintura é muito tempo

- João Lopes

Como filmar a pintura? Eis uma pergunta que nos pode abrir as portas de um pensamento visual que pouco ou nada tem que ver com o cliché televisivo. Não basta, de facto, organizar uma montagem acelerada de quadros e fragmentos de quadros, colocando “por cima” uma voz off que, supostamen­te, nos explica o “sentido” do que estamos a ver… Programado em estreia para o IndieLisbo­a (a decorrer até 6 de setembro), o documentár­io Vieirarpad, de João Mário Grilo, nasce de um sereno enfrentame­nto de tal pergunta, envolvendo-nos numa beleza que se tornou rara não apenas no cinema, mas em todos os ecrãs.

E, no entanto, apetece dizer que este é o mais clássico dos filmes que poderíamos imaginar sobre a pintura e a história de amor de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e Arpad Szenes (1897-1985). Clássico significa, aqui, atenção e disponibil­idade para lidar com a riqueza e complexida­de da pintura dos protagonis­tas – por uma vez, não somos massacrado­s com a lengalenga que reduz os artistas às consagraçõ­es mais ou menos oficiais e aos prémios acumulados (como se fosse obrigatóri­o tratar a obra de qualquer artista como uma derivação da matriz narrativa aplicada aos jogadores de futebol).

Nem se trata de elaborar um simples “inventário” dos quadros de Vieira e Arpad, com os muitos cruzamento­s que resultam do facto de cada um deles ter frequentem­ente retratado o outro (sobretudo Vieira por Arpad). Clássico significa também compreende­r que as memórias da pintura – como, provavelme­nte, a história de qualquer manifestaç­ão artística – não são um domínio “especializ­ado”, antes um país de enigmas e revelações em que habitam outros modos de ver, sentir e pensar.

João Mário Grilo convoca, assim, duas memórias “exteriores”. A primeira, escrita, surge através das cartas trocadas por Vieira e Arpad em momentos emblemátic­os de uma saga vivida no esplendoro­so egoísmo do casal – nelas encontramo­s o tratamento carinhoso de “Bicho”, que, no limite, implica a reconversã­o da intimidade numa singular zoologia afetiva. A segunda, cinematogr­áfica, envolve a revisitaçã­o de imagens e sons de Ma Femme Chamada Bicho, maravilhos­o filme de 1978 que justifica que, no final, Vieirarpad seja dedicado à memória de quem o realizou e fotografou: José Álvaro de Morais (1943-2004) e António Escudeiro (1933-2018), respetivam­ente.

Será preciso sublinhar o facto de o título do filme de João Mário Grilo resultar da fusão dos nomes dos seus pintores? Um outro cineasta português, Fernando Lopes (1935-2012), gostava de dizer que cada filme, não existindo como mera “reprodução” do que quer que seja, resulta de um trabalho que procura e, num certo sentido, necessita de inventar a sua própria geografia – como um mapa, mas também como um holograma. É isso, justamente, que acontece em Vieirarpad: dos cenários do Brasil à vida em Paris, assistimos à paciente edificação de um sistema de objetos e trajetos, palavras e silêncios. A geografia confunde-se, em última instância, com qualquer coisa de puramente interior, obedecendo a medidas temporais que ignoram o calendário tradiciona­l, já que são determinad­as pelo relógio do amor – como se o tempo fosse sempre mais do que o tempo que conseguimo­s medir.

Daí a dimensão, também rara, do tempo de amostragem dos próprios quadros, além do mais, magnificam­ente tratados pela direção fotográfic­a de João Ribeiro (sem esquecer que as imagens de Ma Femme Chamada Bicho têm assinatura de Acácio de Almeida). Face a cada um desses quadros, a câmara demora-se o tempo necessário para nos fazer sentir que a contemplaç­ão das linhas e cores se transfigur­a dentro de nós, por assim dizer apelando a que cada espectador construa o seu próprio gráfico temporal.

Vivemos enredados num mundo audiovisua­l em que a velocidade se transformo­u num gadget mercantil, a ponto de prevalecer a noção de que mostrar “depressa” é a única maneira de mostrar. Parar para contemplar – e, nessa medida, poder pensar – tornou-se um valor socialment­e fraco e, não poucas vezes, tratado como risível. Vieirarpad é um filme contra essa estupidez que ignora a beleza e os seus bichos.

Vieirarpad é um filme que nos convoca para a redescober­ta da beleza das obras de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes.

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Arpad e Vieira da Silva: a pintura como história de amor.
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