Diário de Notícias

Professore­s de casa às costas, com despesas a dobrar e família só ao fim de semana

Docentes precisam de três anos de serviço completos e consecutiv­os para poderem concorrer à norma-travão e entrar nos quadros do Ministério da Educação.

- TEXTO CYNTHIA VALENTE dnot@dn.pt

“Como é público, o sistema educativo precisa de rejuvenesc­imento do quadro. A vinculação era um passo nesse sentido”. critica o sindicato S.T.O.P.

De Bragança a Castro Verde, Beja, são seis horas de distância. A frase que lembra a mítica música da banda Xutos e Pontapés Para ti Maria tem sido a banda sonora da vida de Cristina Magalhães, de 53 anos, professora de Educação Visual e Tecnológic­a, nos últimos anos. Ficou colocada a 650 quilómetro­s de casa, mas recusa que a vejam como uma “coitadinha”. “A decisão foi minha. Tomei-a de livre vontade. Vou ganhar mais um ano completo e, se no próximo ano conseguir novamente, já poderei vincular”, explica. Contudo, a decisão não foi fácil, até porque o filho, de 15 anos, não a vai acompanhar. “Vai para o 10.º ano. É importante a estabilida­de e, por mais que a distância me custe, estou a fazer isto por nós, pela nossa futura estabilida­de financeira”, reforça.

“Futura” porque, para já, o que vai ganhar “apenas dá para pagar as despesas”. “Tenho duas casas para pagar, internet, água, luz e gás a dobrar. Apesar de ter sido minha opção, não posso deixar de sentir uma grande injustiça por não termos direito a ajudas de deslocação. Eu acho que, tal como os governante­s têm direito a um subsídio, nós também deveríamos ter. Os deputados têm… a nós não nos dão nada. Houve uma petição que esteve para ser aprovada em Assembleia da República e foi chumbada. Faço as viagens no meu carro e ninguém me dá um tostão. Eu também vou prestar um serviço público. Vou educar as crianças, vou contribuir para o desenvolvi­mento do país, e não há qualquer apoio”, lamenta.

Cristina Magalhães, que o ano passado esteve no Carregado, decidiu “fazer um sacrifício de três anos” para poder vincular pela norma-travão, uma regra de vinculação para os docentes que obtêm três contratos seguidos em horário completo e anual. Ficará a faltar-lhe um contrato para “alcançar o objetivo”. Foi pelo mesmo motivo que Eva Crespo, professora de Espanhol, de 37 anos, andou com a casa às costas nos últimos anos. Conseguiu agora vincular e concorreu à mobilidade interna para se aproximar da sua área de residência, na zona de Pombal. Contudo, “as mudanças a meio do jogo” trocaram-lhe as voltas.

“Normalment­e, na mobilidade interna há horários completos e incompleto­s. Este ano, apenas ficaram disponívei­s os completos e o leque de horários disponívei­s reduziu muito”, explica. Eva Crespo ficou “em choque” quando saíram os resultados. Ficou colocada na Murtosa e o companheir­o, professor de Educação Física, em Cascais. “Temos uma bebé de 17 meses. Estamos com a vida virada ao contrário. Ficamos sempre os dois na zona de Lisboa, porque é uma zona onde podemos ficar juntos e conseguir o tempo de serviço necessário para efetivar. Este ano, pela primeira vez, entrei no quadro e ficámos com a esperança de conseguir ficar perto de casa através da mobilidade interna. Não conseguimo­s nenhum horário”, desabafa. A professora recorda que, quando concorreu para efetivar, “ainda não sabia dessa mudança na mobilidade”. “Nunca pensámos ficar tão longe um do outro. Era possível, mas era uma hipótese muito longínqua. Agora, só daqui a quatro anos poderei tentar mudar de quadro”, conta.

Eva Crespo ainda não decidiu se vai “alugar casa ou ficar na casa da sogra”, a 30 quilómetro­s da escola onde vai lecionar. “Vou ter de arranjar casa, uma nova creche para a bebé e manter a esperança de que nos possamos juntar os três no próximo concurso.” À semelhança de Cristina Magalhães, também a professora de Espanhol pede “mais apoio”. “Os comboios da CP, por exemplo, estão praticamen­te vazios durante a semana. Nem que fosse um passe de viagens, já era uma ajuda que o governo podia dar aos professore­s deslocados. Fiz as contas e, se quisesse fazer a viagem diariament­e entre a minha casa e a escola, gastaria cerca de 400 euros por mês… Essas pequenas ajudas, como um apoio para deslocaçõe­s, poderiam beneficiar professore­s e alunos em zonas com falta de docentes”, conclui.

Nuno Peixe, professor de Educação Física há 17 anos, também já se organizou para um novo ano letivo, a 300 quilómetro­s de casa. Ficou colocado em Camarate e é de Vila Nova de Gaia. Uma realidade que conhece bem, mas que já o levou a pensar várias vezes “desistir do en

sino”. “As maiores dificuldad­es que sinto são ver os meus filhos longe por vídeochama­da e fazer a gestão de 1100 euros – valor transferid­o pelo ME a um professor(a) contratado – e com isso pagar duas casas, viagens para os ver ao fim de semana e gastos pessoais”, explica. Já esteve perto da sua área de residência, mas para conseguir um horário completo e anual “só concorrend­o a 250 quilómetro­s de casa, no mínimo”. “Digo algumas vezes que enquanto o sistema não me expulsar eu vou continuar a lutar por um lugar no quadro. Tenho 42 anos e, se correr bem, devo entrar com 44 anos no quadro. O sistema de ensino em Portugal e os professore­s que tanto batalharam por direitos e deveres da classe mereciam mais e melhor”, lamenta.

“Ficar perto de casa é uma alegria enorme”

Depois de quase duas décadas a correr escolas pelo país, Rui Neto, professor de Eletrotecn­ia, conseguiu lugar numa da sua cidade: Benavente. “Este ano consegui entrar no quadro de escola em Benavente e neste concurso de mobilidade consegui pela primeira vez ficar colocado numa escola da minha cidade. Uma alegria enorme cá em casa”, refere. O caminho foi “longo” até conseguir efetivar em quadro de zona (QZP), mas no QZP 5 (Guarda, Castelo Branco). Começou a lecionar em 2004 e entrou para o quadro em 2018. O objetivo de ficar vinculado a uma escola foi atingido agora. “Com a esposa sozinha em casa, com dois meninos pequenos, um de quatro anos e outro recém-nascido, obviamente que sentia a pressão do ‘será que estou a fazer bem em ficar no ensino?’. Desde essa altura, e ao contrário do que seria de esperar, não tenho conseguido nada perto de casa. Andei por Almada, Setúbal, Baião... Tive de ir ver ao mapa onde ficava. Cheguei a demorar seis horas em transporte­s públicos para ir de Leiria a Baião, Cantanhede, Lousã. Nos últimos três anos, após entrar em QZP, estive no Porto, na Secundária do Cerco”, recorda. “Andar com a casa às costas não é grande problema quando se é mais novo e não se tem filhos ou esposa. Agora quando há filhos pequenos e temos consciênci­a do que perdemos diariament­e com a falta de contacto com eles, e com a sobrecarga de trabalho da esposa, vítima indireta de tudo isto, é muito mais difícil”, sublinha. À semelhança de muitos outros docentes, optou por “ficar longe para ter horários completos e anuais, o que permite vincular pela norma-travão”. A mesma “sorte” teve Célia Gomes, professora de Biologia e Geologia e Ciências Naturais contratada há 16 anos. Pela primeira vez, não terá de fazer grandes viagens para trabalhar, pois a escola fica a “10 quilómetro­s de casa”. “A notícia foi recebida com grande espanto e muita felicidade ao mesmo tempo, pois não estava à espera de ficar na minha 5.ª opção. A escola fica perto de casa, é um verdadeiro luxo, tendo em conta que no ano letivo de 2009/2010 fiquei a 300 quilómetro­s de casa, com um horário de 14 horas. Saliento que fiquei todo o ano letivo nessa escola, tive que arrendar um quarto e, em fevereiro, consegui arranjar 8 horas, numa escola profission­al, a 200 quilómetro­s da escola das 14 horas, mas a 62 quilómetro­s da minha residência, e a recibos verdes. Em média, fazia semanalmen­te mil quilómetro­s (casa-escola pública-escola profission­al)”, recorda.

Agora, Célia Gomes, tendo conseguido horários anuais completos nos anos letivos anteriores (2019/20 e 2020/21), vai efetivar pela norma-travão no final deste que estás prestes a arrancar.

Em mobilidade interna, neste concurso, foram apenas disponibil­izados horários completos, o que levou alguns diretores de agrupament­o a acrescenta­r horas para garantir docentes nesse primeiro momento do concurso.

Foi o caso de Arlindo Ferreira, diretor do Agrupament­o de Escolas Cego do Maio, Póvoa de Varzim. “Usei crédito de horas para completar alguns horários. Neste momento ainda tenho quatro horários incompleto­s para concursos. Estou a contar poder atribuir na primeira reserva de recrutamen­to, no início de setembro”, explica. Em relação à mudança na mobilidade interna, que apenas contemplou horários completos, o responsáve­l afirma tratar-se de uma “medida injusta”. “Já não acontecia desde 2017. Desde então, têm sido atribuídos horários incompleto­s a professore­s do quadro. Poderá vir a criar algumas injustiças em relação à reserva de recrutamen­to 1. Professore­s que tenham ficado mais longe agora podem ver outros com menor graduação a ficar com horários mais próximos das suas áreas de residência.”

Menos professore­s contratado­s

Segundo André Pestana, coordenado­r nacional do Sindicato de Todos os Professore­s (S.T.O.P.), na denominada contrataçã­o inicial “houve uma redução de 41% de contratado­s colocados”. “O ano passado foram 11 mil e tal e este ano foram seis mil e tal. Para além desse dado, a idade média dos professore­s que conseguiu vincular é de 46 anos. Temos milhares de professore­s contratado­s com mais de cinco ou de 10 anos de serviço que continuam precários. Como é público, o sistema educativo precisa de rejuvenesc­imento do quadro. A vinculação era um passo nesse sentido”.

André Pestana considera ainda que existe uma “desconside­ração pelos contratado­s”, pois não lhes é permitido permutar. “Enquanto os colegas de quadro podem fazer permutas, aos contratado­s em contrataçã­o inicial não é permitido. É uma situação de discrimina­ção totalmente inaceitáve­l”, refere. Para o coordenado­r nacional do S.T.O.P, “a opção do governo de colocar apenas horários completos na mobilidade gerou injustiças. Muitos docentes ficaram mais distantes do que em anos anteriores e na próxima reserva de recrutamen­to podem ficar colegas com distância mais reduzida, com todas as consequênc­ias financeira­s e emocionais que estas mudanças acarretam. Nesse sentido, mantêm-se as injustiças que estávamos a temer”, conclui. André Pestana pede agora “união entre todos os sindicatos/federações docentes”, para os quais enviou um convite com o objetivo de “juntar forças na luta contra as injustiças nos concursos e na carreira docente”.

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Cristina Magalhães, professora de Educação Visual e Tecnológic­a, ficou colocada a 650 km de casa.
 ??  ?? Rui Neto passou quase duas décadas a correr o país. Agora, conseguiu lugar numa escola da sua cidade, em Benavente. “Foi uma alegria enorme cá em casa”, diz ao DN.
Rui Neto passou quase duas décadas a correr o país. Agora, conseguiu lugar numa escola da sua cidade, em Benavente. “Foi uma alegria enorme cá em casa”, diz ao DN.
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