São Lázaro, a biblioteca da monarquia que ainda faz ponte de culturas
Neste espaço histórico de Lisboa começou também a funcionar recentemente a Biblioteca do Médio Oriente e Norte de África.
LISBOA É em Arroios, a freguesia da capital onde residem e trabalham pessoas de mais nacionalidades, que se situa a biblioteca pública mais antiga da cidade. Nasceu em plena monarquia, quando os ideais republicanos já emergiam, e agora quer assumir-se como um centro de encontro de culturas de várias latitudes.
Asala hexagonal forrada a madeira, com um varandim interior ao qual se tem acesso por umas escadas em caracol, é o ex-líbris da Biblioteca de São Lázaro, em Lisboa. Mas este espaço é e quer ser mais do que uma sala bonita onde se vai, se fica maravilhado e raras vezes se volta. “Uma biblioteca não pode ser só um acervo de livros, não pode ser só um depósito de livros. Ela tem de ter uma dinâmica cultural que faça as pessoas mexerem-se intelectualmente e entrarem no ambiente do dia que estamos a viver”, defende António Serzedelo, vogal da Junta de Freguesia de Arroios com o pelouro da cultura.
É nesta freguesia de Lisboa, a mais multicultural da capital – com habitantes de 92 nacionalidades –, que fica esta que é a biblioteca pública mais antiga de Lisboa. “Estamos a falar de uma biblioteca que foi fundada em 1883, numa era monárquica, embora as ideias que a fizeram movimentar-se fossem duas ideias que começavam a estar presentes na sociedade portuguesa, particularmente depois da entrada do liberalismo em Portugal: as ideias republicanas e as ideias da maçonaria”, lembra Serzedelo, antigo jornalista e professor de História Clássica, que agora, “idoso ativo”, aos 76 anos, está de volta à universidade para estudar Ciência das Religiões. “As ideias maçónicas e as ideias republicanas são ideias humanistas e pela igualdade e pela cultura. São três pilares destas duas ideologias. Portanto, facilmente se casaram para fazer esta biblioteca, que seria para dar cultura ao povo, que estava completamente arredado dela”, diz.
Numa época em que a monarquia tremia, queria-se “chegar o mais possível a todos, para todos poderem aderir a essas ideias republicanas de igualdade, solidariedade, fraternidade, que eram as ideias da Revolução Francesa”. As bibliotecas de então eram privadas, das ordens religiosas, da aristocracia, da monarquia, e “só lá entrava quem eles convidavam e permitiam”. “Não havia a possibilidade do homem comum, do povo, do burguês, chegar lá”, afirma.
Foi José Elias Garcia, republicano e membro da maçonaria, que teve o pelouro da instrução municipal em Lisboa, quem impulsionou a construção desta biblioteca. Uma missão que só foi concluída anos mais tarde, quando já era Teófilo Ferreira a ocupar esse cargo. Dizem os documentos da época que nos primeiros nove dias de funcionamento, ainda numa outra localização, a biblioteca forneceu 119 volumes para leitura e que o vereador já pedia mais um funcionário e outra sala para dar vazão ao movimento que ali havia.
Um mundo corrido a livros
Agora, paredes meias com a Escola Básica n.º 1 de Lisboa, a biblioteca tem, além da tal sala hexagonal que nos transporta para os filmes fantásticos ao jeito de Harry Potter, outros espaços para receber quem ali vai. A sala infantil é uma das mais concorridas com uma grande variedade de títulos para os mais novos “brincarem aos livros, brincarem com os livros, lerem os livros”.
Por estas salas e estantes há livros sobre a história de Lisboa, os costumes da vida privada, moda e vestuário, memórias e diários privados. Mas também obras de filosofia, psicologia ou antropologia ou sobre ambiente, feminismo, racismo e o
universo LGBTI. E mais recentemente um departamento que é um reflexo da multiculturalidade da freguesia: a Biblioteca do Médio Oriente e Norte de África, uma secção que, segundo a sua mentora e coordenadora, Maria João Tomás, “quer fazer a ligação entre Portugal e estes mundos. Os embaixadores vieram cá, eu diria mesmo quase que em fila indiana, para trazer os livros dos países deles”, orgulha-se Serzedelo. Foram umas quatro caixas, para cima de 300 obras, a maioria em árabe, mas também traduções para português, livros bilingues. A juntar às iniciativas que têm vindo a decorrer, preparam-se outras, para nos dar a conhecer novos mundos e sabores, como os workshops de culinária com refugiadas da Síria e do Iraque, “com receitas milenares, que não estão escritas em lado nenhum”, salienta Maria João Tomás.