Diário de Notícias

Na casa das minhas avós não havia desperdíci­o

- Joana Petiz Subdiretor­a do Diário de Notícias

Em casa das minhas avós, os jantares de restos eram uma alegria. Havia carnes frias ao lado das fatias da que sobrara do assado de há uns dias, ovos mexidos com restos de peixe, batata e cebola na mais deliciosa roupa velha que já provei, pequenos empadões e saladas com tudo o que de fresco era aproveitáv­el. Um festim, especialme­nte para nós, os miúdos, que vivíamos aquilo como uma espécie de piquenique à mesa, em que cada um se servia do que mais gostava – e raramente sobrava alguma coisa para contar a história. “Há meninos a morrer à fome em África” era a frase repetida semanalmen­te na escola à minha geração, para nos tentar convencer a não deitar comida fora – que nos tais jantares da casa das avós era argumento dispensáve­l, porque eram os melhores petiscos que nos podiam pôr à frente.

Tendo-se perdido o toque de aventura que a idade adulta tende a embaciar, esses hábitos de guardar os restos e aproveitá-los em tempo útil mantivemo-los todos os primos, efeito conjugado do empenho das avós e da imagem dos bebés subnutrido­s que nos chegavam por um dos dois canais de televisão, cujas notícias não se submetiam à necessidad­e de garantir audiências.

Essas imagens de fome não desaparece­ram. Nem são exclusivo de África, por mais que nos tentemos concentrar a responder à última mensagem deWhatsApp para não termos de cruzar olhares com o pedinte que espera a solidaried­ade de um dos clientes do supermerca­do para comer.

Há 27 anos dedicada a ajudar esses que lutam todos os dias por uma refeição, Isabel Jonet tem sido uma voz notável nos alertas para situações de miséria que se propagam silenciosa­mente na vizinhança de cada um de nós, sobretudo numa altura em que a crise pandémica cortou rendimento­s e obliterou meios de subsistênc­ia a famílias inteiras. “Há muitos que nem sabiam como agir, a quem pedir ajuda”, revelava há meses a responsáve­l do Banco Alimentar, que se tem desdobrado em ações para garantir que consegue responder à medida de todos os que procuram a rede de emergência alimentar – perto de meio milhão de portuguese­s, de acordo com os últimos números. Lembrava, noutra ocasião: “O desperdíci­o alimentar é um absurdo económico que tem impactos ambientais e sociais imensos e que é preciso combater com seriedade.”

De acordo com a Food and Agricultur­e Organizati­on (FAO), todos os anos são desperdiça­das 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos, um terço de tudo o que é produzido é inutilizad­o. Isto acontece igualmente nos países ricos e nos pobres. Não havendo dados verificado­s para Portugal, as estimativa­s apontam para que, em média, cada português deite para o lixo 100 kg de comida todos os anos.

Há um drama económico, social e ambiental nestes números. Que são incompreen­síveis numa sociedade supostamen­te mais desperta para os seus problemas e mais disposta a fazer o melhor pelo planeta. E que são óbvios na sabedoria das avós, que nos diziam, enquanto cerziam umas calças de trazer por casa, punham cotoveleir­as em camisolas antigas ou faziam banquetes a partir de restos: “Aquilo que se estraga ninguém aproveita.”

A conversa das avós pode não fazer tudo, mas essa experiênci­a tantas vezes desprezada em nome de práticas supostamen­te sustentáve­is e bem intenciona­das, mas sem efeito prático, tem o grande valor de nos abrir os olhos e travar a mão mole para o desperdíci­o.

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