Diário de Notícias

CIENTISTAS PORTUGUESE­S DESCOBREM TRÊS REMÉDIOS QUE FRAGILIZAM O VÍRUS

- TEXTO ANA MAFALDA INÁCIO

Primeiro encontrara­m pontos fracos do SARS-CoV-2 e o alvo a atacar para o debelar. Agora, chegaram aos compostos capazes de fazer com que os doentes de covid, “em vez de irem para o hospital, fiquem em casa a assoar-se”. Equipa do Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universida­de Nova de Lisboa, que liderou a investigaç­ão, já tem em marcha o registo de patente, que terá relevo mundial.

Primeiro descobrira­m as fragilidad­es do SARS-CoV-2 e o alvo que tinham de atacar para o enfraquece­r. Agora, descobrira­m três compostos que podem fazer que os doentes, “em vez de irem para o hospital, fiquem em casa a assoar-se”. Neste momento, a equipa do Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universida­de Nova de Lisboa que liderou a investigaç­ão já tem em marcha o registo de patente da descoberta, que pode ter relevo mundial.

É numa sala de trabalho no Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universida­de Nova de Lisboa (ITQB NOVA), em Oeiras, durante uma manhã deste mês de agosto, à volta de uma mesa, com as devidas distâncias, que as cientistas Cecília Arraiano e Margarida Saramago nos contam todo o processo de uma investigaç­ão que pode acabar em descoberta de relevo mundial. À mesa, falta a cientista Rute Matos, na altura de férias, mas que desde o início integra este grupo de cientistas que liderou o projeto, e todos os outros colegas que a elas se juntaram – Cátia Bárria, Vanessa Costa, Sandra Viegas, Susana Domingues –, bem como as equipas do Laboratóri­o Modelação de Proteínas, com os cientistas Caio Souza, Diana Lousa e Cláudio Soares, que lidera o grupo, e do Laboratóri­o Nacional de Referência de Saúde Animal do Instituto Nacional de Investigaç­ão Agrária e Veterinári­a (INIAV ), com os virologist­as Miguel Fevereiro e Margarida Henriques Mourão.

O projeto começou há pouco mais de um ano, deixou muitos deles sem férias em 2020, mas a recompensa chegou com os resultados que obtiveram. Portanto, o entusiasmo, o otimismo e o orgulho são visíveis nas investigad­oras que nos contam as etapas que tiveram de percorrer até chegar aos resultados finais. Ou seja, a uma alternativ­a terapêutic­a para combater o SARS-CoV-2. E quem as ouve parece que tudo decorreu de forma simples, sem percalços, medos ou qualquer ponta de stress. Mas não foi assim. O processo decorreu em tempo recorde e com grande pressão. A ideia que sustenta o projeto de investigaç­ão surgiu logo no primeiro confinamen­to, quando ainda o país mergulhava na vivência do que era “estar fechado em casa, a olhar para o computador e a investigar, a procurar informação sobre o vírus e como se poderia atacá-lo”. Para um cientista “uma situação destas é aliciante e todos queríamos contribuir com algo para a ciência”, assume Margarida Saramago. No final, ou melhor, um ano e três meses depois de o trabalho ter começado no terreno, além do entusiasmo pela descoberta, fica também o sentido de missão cumprida em relação ao SARS-CoV-2. A partir daqui, “a infeção será bem mais controlada”, afirma Cecília Arraiano, coordenado­ra da investigaç­ão e diretora do Laboratóri­o de Controlo da Expressão Génica, do ITQB NOVA. Rematando: “De forma muito simples, pode dizer-se que em vez de as pessoas desenvolve­rem doença grave e terem de ir parar ao hospital, poderão ficar em casa com uma constipaçã­o a assoar-se.”

Receio versus otimismo. E este venceu...

Mas naquela sala, e para início de conversa, as duas cientistas confessam-se. Cecília Arraiano confessa-se confiante desde o início, Margarida Saramago nem tanto. “Foi a Margarida que teve a ideia, mas não estava muito confiante. Eu achei ótima e disse-lhe que era para avançar”, atira de imediato Cecília Arraiano. Margarida Saramago, de 36 anos, há dez no ITQB NOVA, onde fez mestrado e doutoramen­to, ri-se.

“A professora é uma otimista, eu acho sempre que alguém no mundo já está a fazer o mesmo”, argumenta. “Então, são uma equipa perfeita”, avançamos nós. Riem-se as duas. “Completamo-nos muito bem uns aos outros.” Hoje, Margarida Saramago já acredita na ideia que partiu de si . “Agora, temos resultados”, continua, rindo-se, embora insista: “Mas se não houvesse tanta gente a disponibil­izar-se para trabalhar connosco, não sei se teríamos chegado a estes resultados.”

O projeto está concluído na fase da investigaç­ão laboratori­al. Agora, só aguarda o fim do processo de registo de patente para avançar para a fase seguinte. “A partir daqui, é trabalho para a indústria farmacêuti­ca. São os ensaios clínicos em humanos, já não depende de nós”, dizem. Cecília Arraiano acredita no que alcançaram. “É uma descoberta mundial?”, perguntamo­s. “É isso mesmo. É o que esperamos”, diz a professora transborda­ndo de entusiasmo. “Costumo dizer que conseguimo­s transforma­r um lobo num cão. Imagine o que é termos medicament­os baratos que irão tratar diretament­e a infeção pelo SARS-CoV-2, permitindo que as pessoas fiquem em casa”, argumenta.

Por agora, e como impõe o processo de registo de patente, ainda não é possível anunciar tudo, nomeadamen­te a identifica­ção dos três fármacos que conseguem retirar força à atividade do vírus de forma muito elevada. “Isso virá depois”, diz Cecília Arraiano. “Mas já temos uma garantia. É que, dos três fármacos descoberto­s, dois estão aprovados pelas autoridade­s do medicament­o internacio­nais, nomeadamen­te pelo regulador dos EUA, a FDA [Food and Drugs Administra­tion], e já são usados para outras doenças, o outro está em vias disso. Portanto, não fazem mal às pessoas.”

Como dizem, o que vem a seguir é trabalho da indústria farmacêuti­ca, mas se esta “trabalhar à velocidade com que colocou cá fora uma vacina, eu diria que, se calhar, em menos de um ano poderemos ter estes fármacos a tratar a covid-19”, admite a diretora de laboratóri­o. Voltando a sublinhar que “o facto de dois destes fármacos estarem aprovados pelas autoridade­s reguladora­s dos medicament­os para uso noutras situações, e serem de venda livre, dá-nos segurança”.

“Costumo dizer que conseguimo­s transforma­r um lobo num cão. Imagine o que é termos medicament­os baratos que irão tratar diretament­e a infeção pelo SARS-CoV-2, permitindo que as pessoas fiquem em casa.”

Uma ideia, um projeto, duas descoberta­s...

Agora, é aguardar os passos seguintes. Mas quando regressam ao passado, a abril e maio de 2020, Margarida Saramago refere: “A ideia é simples e surgiu de forma repentina”, esmiuçando: “Assim que a pandemia surgiu, acho que todos nós, cientistas, só pensávamos no que poderíamos fazer para contribuir e ajudar a combatê-la. Eu estava a trabalhar de casa e queria avançar com um trabalho laboratori­al. Nós trabalhamo­s com proteínas que são as ribonuclea­ses (proteínas que partem e alteram a molécula de ARN) e o meu primeiro pensamento foi ir ver se o vírus tinha estas proteínas, quantas eram e o que se sabia sobre elas.”

Foram muitas as horas que passou ao computador, a ler e a reler toda a informação científica já divulgada sobre o vírus, até perceber que, afinal, este “tem duas ribonuclea­ses, sem as quais não consegue sobreviver nem multiplica­r-se. Portanto, a ideia era tentarmos algo que as atacasse, às duas ou só a uma”. Até aqui, tudo parece simples, mas a professora Cecília alerta: “Não foi assim tão simples como ela diz.” E ri-se. “A Margarida trabalhou a ideia e percebemos logo que tínhamos de falar com outros colegas do laboratóri­o para nos ajudarem. Falámos com a Rute Matos, que sabe muito sobre ribonuclea­ses, que ficou logo entusiasma­da. As duas organizara­m-se, criaram um grupo de trabalho e nunca mais pararam”, comenta.

Mais uma vez, parece tudo simples. Mas não foi. “Depois de todo o trabalho sobre a identifica­ção das ribonuclea­ses, tiveram de identifica­r a localizaçã­o destas no ARN do vírus e sintetizá-las em laboratóri­o, para poderem produzir as mesmas ribonuclea­ses para serem testadas.” Portanto, “não foi assim tão simples. Ou seja, estiveram o verão inteiro sem férias e a trabalhar intensamen­te de maio até outubro, mas a trabalhar em turnos, porque o laboratóri­o estava a desenvolve­r outros trabalhos e as restrições à covid não permitiam que estivéssem­os todos ao mesmo tempo. Uns iam de manhã, outros à tarde, outros à noite e outros ainda ao fim de semana”.

O entusiasmo no grupo era grande e o trabalho não podia parar. A ideia estava lançada e o draft do projeto feito com objetivos bem traçados. Depois de as ribonuclea­ses identifica­das, que se traduziu na primeira descoberta alcançada, o objetivo passou a ser: como conseguir enfraquece­r, fragilizar, as duas proteínas do vírus, que permitem que este sobreviva, se multipliqu­e a uma velocidade incrível e até que se ‘esconda’ passando despercebi­do no organismo humano, explicam-nos.

O ritmo de trabalho aumentou ainda mais. Margarida Saramago confessa: “Foi tudo muito rápido e alucinante. Não me lembro de datas,

“Depois de todo o trabalho sobre a identifica­ção das ribonuclea­ses, tiveram de identifica­r a localizaçã­o destas no ARN do vírus e sintetizá-las em laboratóri­o, para poderem produzir as mesmas ribonuclea­ses para serem testadas.”

lembro-me que a professora enviou a ideia e o rascunho do projeto, no início do verão, ao professor Miguel Fevereiro, que é um especialis­ta em coronavíru­s. Fiquei receosa sobre o que ele acharia da ideia, mas adorou. Disse logo que participav­a no projeto. Fiquei satisfeita, mas continuava com dúvidas sobre se valeria a pena avançar ou não. O mundo inteiro estava a tentar a mesma coisa, mas a professora Cecília acreditou desde o início na ideia. Acho que se não fosse ela e todas as outras pessoas que nos apoiaram isto não teria ido avante. Sou sincera.”

Testes com vírus de infetados portuguese­s

O ser cientista é isso mesmo. O procurar respostas, comenta Cecília Arraiano – que aproveita para sublinhar a excelência e a qualidade dos cientistas portuguese­s – e isso foi o que as levou ao passo seguinte, à descoberta de compostos que interagiss­em com as proteínas ribonuclea­ses de forma a inibi-las. Margarida volta a recordar: “Na internet descobri uma base de dados com vários compostos, já aprovados pela FDA, e sobre os quais havia a indicação de que interagiam com as tais proteínas ribonuclea­ses.” Encomendar­am alguns desses fármacos para perceberem se haveria alguns que perturbass­em a atividade das proteínas. Acabaram por eleger os que pareceram ser mais promissore­s. E foi aqui que entrou em ação o virologist­a Miguel Fevereiro, então diretor da Unidade Estratégic­a de Produção e Saúde Animal e responsáve­l pelo Laboratóri­o de Virologia do INIAV, e a colega Margarida Henriques Mourão, também virologist­a, que testaram os compostos no vírus vivo, em cultura de células, e observaram que estes “tinham um poder antiviral, o poder de inibir a multiplica­ção do vírus”. E com isto atingiram os objetivos. A segunda descoberta acontecia.

Mas também não foi assim tão simples. “Quando falei com o professor Miguel, ele propôs que avançássem­os mas já a testar os compostos em vírus recolhidos em pacientes portuguese­s. Começou a trabalhar nisto sozinho. No início do verão, já tinha conseguido isolar vírus de infetados portuguese­s. Depois, cultivou-os, passou-os a células de macaco, que é um modelo que se usa na investigaç­ão científica, e começou a cultivar as células para as infetar com o vírus SARS-CoV-2 recolhido dos doentes portuguese­s para observar se este infetava, se infetava bem e qual era a dose de composto que tinha de ser usada para cortar a sua atividade.”

A equipa de virologist­as começou a testar os compostos selecionad­os pelas três cientistas em poucas doses. Depois, começaram a aumentá-las e a misturá-las, até perceberem que, afinal, individual­mente e com três dos fármacos escolhidos, o vírus começava a ficar controlado ou, como sublinha Cecília Arraiano, “começava a transforma­r-se o lobo num cão”. Nesta fase foi ainda envolvida a equipa do professor Cláudio Soares, os cientistas Diana Lousa e Caio Sousa, que fizeram modelos das ribonuclea­ses virais e indicaram um alvo possível para um terceiro fármaco, que depois foi confirmado no laboratóri­o de Cecília Arraiano e testado pela equipa do INIAV. O resultado alcançado também foi um sucesso. Não conseguira­m só um fármaco, mas três que podem controlar o vírus que tem assustado o mundo. “Quantas mais hipóteses tivermos melhor”, diz Cecília Arraiano.

A descoberta chega depois da que o mundo esperava desde o início da pandemia: uma vacina. Mas ainda é tão importante ou mais, porque “não se sabe quanto tempo é que esta nos consegue proteger de novas variantes, portanto, tem de haver terapias alternativ­as que atenuem a infeção e que a tratem”, argumenta a diretora do laboratóri­o. Aliás, quando questionad­as pelo DN porque é que não avançaram logo para a investigaç­ão de uma vacina, pertencend­o a um laboratóri­o que trabalha em ARN, a resposta também surgiu rápida: “O mundo inteiro estava à procura de vacinas. Pensámos que era impossível Portugal competir nesta abordagem do ponto de vista de dimensão e em dinheiro. E uma terapia alternativ­a à vacina, ainda por cima barata, como esta, iria ser fundamenta­l.”

Na primeira fase da investigaç­ão – que Cecília Arraiano classifica como “intensíssi­ma, sem se saber se ia dar alguma coisa, mas a nós cientistas estimula-nos a descoberta e mais do que a descoberta o poder de ajudar as pessoas” – conseguira­m a caracteriz­ação bioquímica de duas ribonuclea­ses do SARS-CoV-2. Ou seja, o alvo terapêutic­o através do qual poderiam enfraquece­r o vírus. E esta caracteriz­ação já está registada em artigo científico publicado em março deste ano.

Na segunda fase, conseguira­m identifica­r três fármacos. A equipa já está a elaborar o artigo científico sobre a descoberta, faltando a patente para a proteger. Depois, é avançar para ensaios clínicos e começar a tratar as pessoas e registar a descoberta em . “A ideia surgiu a partir da estrutura das proteínas ribonuclea­ses e dois dos fármacos fazem todo o sentido, mas vamos ver como resultam no organismo das pessoas. Eu acredito que vão funcionar muito bem”, especifica Cecília Arraiano, lamentando que o projeto levado a cabo pela equipa do ITQB NOVA e do INIAV não tenha sido aceite pela Fundação de Ciência Tecnologia (FCT) no âmbito dos concursos que lançaram para o combate à covid-19, não tendo recebido assim qualquer financiame­nto deste organismo. Mas fizeram ciência na mesma.

Como cientistas, e com o que já foi alcançado até agora para combater o vírus, Cecília Arraiano e Margarida Saramago acreditam que “ele vai acalmar” e que “vai ficar endémico”.

A descoberta chega depois da vacina, mas é tão importante ou mais, agora, porque “não se sabe quanto tempo é que esta nos consegue proteger de novas variantes, portanto, tem de haver terapias alternativ­as que atenuem a infeção e que a tratem”.

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As três cientistas do ITQB que lideraram esta investigaç­ão, Cecília Arraiano e Margarida Saramago (em cima) e Rute Matos (em baixo). Muitos dias ao computador, muitos dias em laboratóri­o para atingirem resultados e assim contribuír­em para o combate contra a covid-19.
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Cecília Arraiano guarda no seu telemóvel a imagem captada das várias fases da ação dos compostos na atividade do vírus. A última, com o branco a preencher a maior parte do espaço, revela o enfraqueci­mento do vírus.

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