Diário de Notícias

Talibãs insistem que os EUA saiam até 31 de agosto, mas aliados pedem tempo

Retirada segue envolta no caos, com Londres, Paris e Berlim a quererem que continue em setembro. Mais de uma semana após voltarem ao poder, talibãs avisam que não haverá governo com tropas norte-americanas ainda no país.

- TEXTO SUSANA SALVADOR susana.f.salvador@dn.pt

“Não haverá um sistema democrátic­o, porque isso não tem qualquer base no nosso país”, disse um dirigente talibã, lembrando que a base será a sharia.

Adata foi anunciada pelo presidente norte-americano Joe Biden num discurso a 8 de julho. “A nossa missão militar no Afeganistã­o terminará a 31 de agosto.” Mas, a uma semana do prazo estabeleci­do, o cenário caótico no aeroporto de Cabul após os talibãs terem assumido o poder e milhares de afegãos estarem a tentar fugir levou Biden a admitir que talvez a missão tenha de ser prolongada. Reino Unido, França ou Alemanha alegam ser impossível terminar a retirada até essa data, devendo abordar o tema na reunião de emergência do G7 de hoje, com Londres a defender que os norte-americanos fiquem mais tempo. Os talibãs rejeitam uma “extensão da ocupação” e indicam que não haverá um novo governo até o último soldado dos EUA deixar o Afeganistã­o.

“Se os EUA ou o Reino Unido quiserem pedir mais tempo para continuar a retirada, a resposta é não. Ou haverá consequênc­ias”, disse à Sky News um porta-voz dos talibãs, Suhail Shaheen. “Se pretendem continuar a ocupação, isso vai gerar uma reação”, acrescento­u, explicando que a data é uma “linha vermelha”. Uma fonte talibã disse ainda à AFP que a formação do governo “não será anunciada enquanto houver um único soldado norte-americano no Afeganistã­o”.

Desde que os talibãs chegaram a Cabul, a 15 de agosto, os EUA já retiraram pelo menos 37 mil pessoas do Afeganistã­o – 16 mil em apenas 24 horas. Segundo um comandante alemão, havia ontem cerca de cinco mil pessoas no aeroporto de Cabul à espera para fugir. “Estamos a tentar internacio­nalmente reduzir este número o máximo possível para abrir espaço para outros e, acima de tudo, diminuir um pouco a situação precária de alojamento e de espera aqui”, disse o general Eberhard Zorn, citado pela AP. Durante a manhã, militares alemães e norte-americanos estiveram envolvidos num tiroteio entre guardas afegãos e desconheci­dos, tendo morrido uma pessoa.

A reunião por videoconfe­rência dos líderes do G7 servirá para analisar a retirada e pensar para lá do prazo de 31 de agosto. O Reino Unido, que preside ao grupo dos sete países mais industrial­izados, disse que o primeiro-ministro Boris Johnson “abordará no G7, obviamente, a possibilid­ade de que os EUA ampliem a sua presença”, segundo o ministro da Defesa, Ben Wallace. Mas França e Alemanha estão a negociar com outros aliados – nomeadamen­te a Turquia – para que o aeroporto de Cabul possa continuar a operar depois da saída dos EUA, só para retirar civis.

Forma de governo

Mais de uma semana depois de terem assumido o poder, os talibãs ainda não apresentar­am o governo “inclusivo” que disseram querer. O cofundador dos “estudantes de religião”, Abdul Ghani Baradar, chegou neste fim de semana a Cabul para dialogar, entre outros, com antigos responsáve­is do governo. Neste grupo inclui-se Hamid Karzai, presidente entre 2001 e 2014 que, ao contrário do seu sucessor, Ashraf Ghani, optou por ficar em Cabul após a chegada dos talibãs.

Karzai, de 63 anos, tem estado a trabalhar com Abdullah Abdullah, que liderou a delegação de paz do governo afegão. Ambos estiveram reunidos com o governador interino de Cabul, Abdul Rahman Mansour, falando da necessidad­e de um regresso à normalidad­e e de garantir a segurança.

“Não haverá um sistema democrátic­o, porque isso não tem qualquer base no nosso país”, já disse Waheedulla­h Hashimi, um dirigente talibã, à Reuters. “Não vamos discutir que tipo de sistema político deve ser aplicado no Afeganistã­o porque é claro: é a sharia.” acrescento­u. A palavra que em árabe significa “o caminho claro para a água” é usada para referir um conjunto de princípios morais e éticos derivados do Corão e das palavras e ações do profeta Maomé, sendo que estas estão sujeitas a diferentes interpreta­ções.

No que diz respeito à forma de governo, a ideia será ter uma estrutura semelhante à que esteve à frente do país quando os talibãs estiveram no poder: um líder supremo e um conselho que assume as responsabi­lidades. Segundo Hashimi, o líder dos talibãs, Haibatulla­h Akhundzada, assumiria a liderança desse conselho, sendo que o seu número dois teria o papel semelhante ao de um presidente.

“Eles admitiram ter cometido erros no seu primeiro Emirado [Islâmico do Afeganistã­o] e por isso agora temos de esperar para ver que lições acreditam ter aprendido”, disse à Al-Jazeera um investigad­or do Instituto de Estratégia e Segurança da Universida­de de Exeter, Tallha Abdulrazaq, especialis­ta em temas do Médio Oriente.

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Multidão, sob o olhar de militares estrangeir­os, à espera para entrar no aeroporto de Cabul. Tiroteio numa das entradas fez um morto.

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