Diário de Notícias

O amor é outra coisa

- Afonso Camões

Casamo-nos menos, cada vez mais tarde, e muito menos perante o altar dos juramentos. O amor é outra coisa e nem sempre mora aí.

Q “uem é casado há 40 anos com dona Maria não entende de casamento, entende de dona Maria. De casamento entendo eu, que tive seis.” Tomo de empréstimo a saudosa graça do brasileiro Chico Anísio para dizer que nós, portuguese­s, nos casamos menos, cada vez mais tarde, e muito menos perante o altar dos juramentos.

A sociedade portuguesa está mais laica, mais seculariza­da, e é cada vez maior o número dos que dispensam os votos religiosos para firmar o compromiss­o de matrimónio. A queda vertiginos­a nos casamentos religiosos é o indicador mais claro de uma tendência que vem de há muito, mas nunca como agora tão manifesta. Os números são eloquentes, falam por si: em 1990, quase 80% dos casamentos eram feitos pela Igreja; em 2005 eram 55%; em 2019 já andavam por um terço; e no ano que passou já não chegaram a 13%, ainda que, nesta última etapa, tenhamos de descontar as limitações impostas pelo arrastar da pandemia.

Até recentemen­te, as manifestaç­ões de religiosid­ade eram fortemente influencia­das pela tradição, mas também por inércia. E ainda acontece. Entre nós, são muitos os que se declaram católicos porque foram batizados, mas não se aproximam de uma igreja mais do que para funerais. As estatístic­as sobre uniões conjugais revelam agora uma vaga de fundo, acelerada e provavelme­nte definitiva, de laicização da sociedade portuguesa. A maioria dos nossos jovens vive à margem de qualquer igreja e, se (e quando) se casam fazem-no “pelo civil”. Muitos dos casais que passaram pelo altar, para não desgostar a família, vão deslaçando o sacramento e não se sentem mais reféns das convenções associadas à união religiosa.

São porventura muitos os fatores que explicam esta mudança vertiginos­a das uniões conjugais. Em primeiro lugar, há muito menos casamentos em geral: em 2015, foram apenas 32 043, quando em 2000 tinham sido 63 752. A demografia contribui obviamente para esse declínio, já que a nossa taxa de fecundidad­e tem vindo a cair de uma média de 3,2 filhos por casal em 1960 para 1,4 no ano passado. Mas a crise também contribuiu, e muito: é cada vez mais difícil aos nossos jovens emancipare­m-se. O desemprego, ou o emprego precário e os baixos salários obrigam muitos jovens a continuar a viver com a família ou, se tiverem sorte, a partilhar um apartament­o. Mas dificilmen­te reúnem as condições de dignidade que consideram necessária­s para constituir um lar. As estatístic­as confirmam, aliás, que apenas um em cada cinco jovens até aos 29 anos tem condições para viver sem a ajuda familiar. Está aí, em boa medida, a explicação para o facto de a idade média do primeiro casamento em Portugal ser de 34,9 anos para os homens e 33,4 para as mulheres, já muito próxima do país que regista as uniões mais serôdias, a Suécia, com 35,5 e 33 anos em média, respetivam­ente.

Mas as maiores mudanças vêm da evolução cultural e social, do contexto das nossas sociedades. Durante séculos, o casamento serviu para formalizar o relacionam­ento conjugal e permitir, no caso dos fiéis, as relações sexuais. Mas isso mudou, em particular depois dos anos 1970. Muitos casais passaram a conviver sem formalizar a união, o que antes era mais do que pecado, também motivo de escândalo. Com o tempo, tornou-se comum associar a formalizaç­ão do casamento ao plano de nascimento dos filhos, simplesmen­te para facilitar o acesso aos benefícios relacionad­os com essa união legal. Mas com a equalizaçã­o das uniões de facto, até essa formalidad­e se tornou dispensáve­l. Em resumo, casamo-nos menos, cada vez mais tarde, e muito menos perante o altar dos juramentos. O amor, esse, é outra coisa e nem sempre mora aí.

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