Diário de Notícias

Quando a máfia se propõe governar um país

- Fernanda Câncio

Logo a seguir à tomada de Cabul pelos talibãs, domingo 15 de agosto, o ex-governador do Banco Central Afegão (BCA), Ajmal Ahmady , foi para o Twitter contar como tinha conseguido fugir com a família. E, dois dias depois, que os talibãs tinham ido ao banco, perguntand­o: “Onde está o dinheiro?”

“Se isto é verdade” comentou Ahmady, “Têm rapidament­e de contratar um economista.” E explicou: “O banco tem nove mil milhões de dólares em reservas, mas a maior parte está, como é normal, em títulos de tesouro e ouro.” Setemil milhões, informou de seguida, estão aplicados em títulos da Reserva Federal Americana – que Biden mandou congelar. Como congelada foi a remessa, prevista para esta segunda-feira, de 340 milhões provenient­es do FMI.

“Como há um enorme défice nas conta corrente do país, precisávam­os de receber remessas físicas de dinheiro [dos EUA] todas as semanas”, continuou o ex governador. “Tendo-se a situação deteriorad­o muito, as remessas pararam e as reservas estavam próximas do zero.” Ainda antes de Cabul cair, foram estabeleci­dos limites nos levantamen­tos e para a entrada de dólares nos bancos. E Ahmady concluía: “Os fundos acessíveis aos talibãs serão de 0,1 a 0,2% das reservas de dinheiro do país. Ganharam do ponto de vista militar. Mas agora têm de governar. Não vai ser fácil.”

Há já, desde esta segunda-feira, um novo governador do banco central, cujas qualificaç­ões não foram explicitad­as. Aliás uma das grandes incógnitas é quem têm, e com que formação e preparação, os talibãs para integrar a governação do país, e como vão governá-lo; outra é como vão financiar esse governo. É que podem, como garantem os analistas, ser “imensament­e ricos”, e estar a administra­r vastas áreas de território afegão há anos, mas tudo isso como grupo mafioso.

De acordo com um recente relatório da ONU, obtêm de 220 milhões a 1170 milhões de libras anualmente a partir da produção, transforma­ção e comércio de ópio para o mercado ilegal, mas também de anfetamina­s e outras drogas, e de um sistema generaliza­do de extorsão, em que cobram por segurança a lojas, fábricas, etc, impondo também taxas “religiosas” (uma de 10% e outra de 2,5% - no total, segundo um relatório da NATO de 2020 que cita os próprios talibãs, perfazendo cerca de 117 milhões de libras anuais). Tem havido outras fontes de financiame­nto para o grupo, nomeadamen­te doações de “simpatizan­tes”, estimadas em 365 milhões de libras/ano.

Como se conclui, o caráter ostensivam­ente religioso dos talibãs não os impede de funcionar como uma máfia vulgar; a única coisa que os distingue de uma Cosa Nostra ou dos cartéis de droga sul americanos é o facto de quererem governar (as máfias costumam influir nos governos via corrupção, não se aprestam a dirigi-los diretament­e; o colombiano Escobar, que chegou a ser eleito deputado, foi uma exceção).

É certo que já governaram, durante cinco anos, de 1996 a 2001 – num país que nunca esteve totalmente sob seu domínio e devastado por anos e anos da guerra civil que se seguiu à guerra contra os soviéticos – mas, a título de exemplo, o primeiro governador talibãs do banco central era um guerrilhei­ro que declarou o dinheiro em circulação sem valor e cancelou a encomenda de mais.

Durante as duas últimas décadas, e apesar de continuar a ser um país muito pobre, o Afeganistã­o duplicou o PIB e ganhou infraestru­turas. Com cerca de 80% do orçamento do país (para 2021, era de seis mil milhões de dólares) a ser, nas últimas décadas, assegurado pelos EUA e comunidade internacio­nal, e o valor das importaçõe­s triplicand­o o das exportaçõe­s, não é fácil perceber como os talibãs poderão governar sem ajuda monetária – e como poderão ter ajuda monetária assumindo a postura irredutíve­l que os caracteriz­a, e que estão a ensaiar face ao anúncio por Biden de que pondera a possibilid­ade de as forças americanas não saírem, como previsto, a 31 de agosto.

Resta, é claro, saber o que a China e a Rússia estão dispostas a fazer. Mas não parece haver dúvida de que a ideia de termos acabado de assistir à derrota do imperialis­mo por um grupo de bravos guerrilhei­ros é um conto algo infantil. Os mafiosos talibãs precisam de dinheiro porque o Afeganistã­o precisa de dinheiro – e se as pessoas estiverem a morrer de fome não haverá ninguém para extorquir. Tudo leva a crer que estão a contar com uma mãozinha do imperialis­mo, ocidental ou oriental – ou dos dois. A história humana está cheia de fábulas assim.

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