As meninas de Cabul
Apesar de achá-la necessária e acertada, não partilho da estupidez de exultar de maneira acrítica com a saída americana do Afeganistão, considerando-a uma “derrota do imperialismo”, e muito menos me alegra o que, previsivelmente, poderá acontecer nesse país sob o domínio dos talibãs, sobretudo, mas não só, o destino imediato das mulheres afegãs.
Não posso, entretanto, deixar de levantar um ponto: a falta de coragem política e de honestidade intelectual, para não dizer hipocrisia, com que o assunto tem sido tratado. A questão de fundo, para mim, é que ninguém tem apontado o dedo aos verdadeiros causadores da situação. Não me refiro, esclareço, à saída das tropas americanas concretizada por Joe Biden. A maka já vem de trás.
Leio aqui no DN, em artigo de Patricia Akester publicado no passado dia 20: “Em 1977 as mulheres representavam mais de 15% do órgão legislativo mais poderoso do Afeganistão, estimando-se ainda que, no início dos anos 1990, 70% dos professores, 50% dos funcionários públicos e dos estudantes universitários e 40% dos médicos em Cabul eram mulheres (...). Em 1996 teve lugar a trágica conquista da capital pelos talibãs, a que se seguiu a contínua implementação de normas e orientações em clara contravenção dos direitos fundamentais das mulheres afegãs.”
A pergunta que ninguém faz é: quem governava o Afeganistão nesse período? Basta consultar a Wikipédia para saber que, entre 1978 e 1992, o Afeganistão foi dirigido por um governo socialista, que tentou realizar uma série de reformas políticas, económicas, sociais e culturais com vista à modernização do país. Um dos pontos mais importantes de tais reformas foi, precisamente, a promoção da igualdade entre os sexos e a valorização e a ampliação dos direitos das mulheres.
Em 1992, o governo socialista caiu e o Afeganistão entrou em guerra civil, que culminou com a tomada do poder pelos talibãs em 1996. Como é que foi criada a situação que levou os talibãs ao poder? A esmagadora maioria daqueles que hoje, legítima e justificadamente, manifestam o seu receio pelo futuro dos cidadãos afegãos em geral, também não o diz.
Basta, novamente, consultar a Wikipédia: em 1978 (ou seja, no próprio ano em que os socialistas tomaram o poder no Afeganistão), os EUA começaram a treinar insurgentes e a dirigir transmissões de propaganda a partir do Paquistão. No início de 1979, começaram a reunir líderes insurgentes estrangeiros para definir as suas necessidades. A ajuda da CIA aos “contras” afegãos foi aprovada em julho de 1979, conforme o então secretário de Estado americano Zbigniew Brzensinski. A União Soviética só entrou no Afeganistão seis meses depois, a fim de tentar salvar os seus aliados. Na realidade, caiu na armadilha norte-americana, pois o Afeganistão transformou-se no “Vietname soviético”, tendo contribuído para acelerar o fim da maior potência socialista.
Ou seja: os Estados Unidos foram o principal responsável pelo crescimento dos talibãs, tendo contribuído decisivamente para a sua tomada do poder em 1996. É certo que, há vinte anos, intervieram diretamente no Afeganistão, a fim de expulsá-los. Mas o motivo assumido dessa intervenção não foi “salvar as meninas de Cabul”. A justificação oficial é que os talibãs estavam por detrás do 11 de Setembro. O atual sobressalto quase universal pelo futuro dos cidadãos afegãos, em especial as mulheres, sob a nova dominação talibã, não pode ignorar tais factos.
A finalizar, noto igualmente que, ao contrário do que alguns parecem ignorar, por qualquer interesse (bem ou mal intencionado), a tentativa de interpretar os acontecimentos no Afeganistão não se esgota na análise de um único aspeto de tais acontecimentos. Por isso, tenciono voltar ao tema geral do Afeganistão nas próximas semanas.