Diário de Notícias

Património e memória

- Guilherme d’Oliveira Martins

A crise sanitária revelou, no fundo, que a lógica mercantil não pode confundir-se com serviço público da cultura, que nada tem que ver com a mera lógica de luna park.

Acrise pandémica obriga a tirar consequênc­ias urgentes relativame­nte a questões que muitos julgariam apenas considerar num prazo longínquo e incerto. Tornou-se evidente que as atividades culturais foram fortemente afetadas. Daí serem essenciais respostas necessária­s e urgentes. É certo que as novas tecnologia­s de informação e comunicaçã­o e as soluções digitais permitiram a criação de sucedâneos não presenciai­s e transmissõ­es à distância. No entanto, as respostas são insuficien­tes, em especial pelo carácter precário das soluções e pela ausência de condições sociais e materiais que permitam aos agentes culturais a preservaçã­o de condições essenciais para uma atividade em benefício de todos. Assim, tem de considerar-se o Plano de Recuperaçã­o para apoio ao património cultural e à cultura em geral como componente­s fundamenta­is de um programa de urgência. Não se trata de mobilizar recursos “para europeu ver” e muito menos de fazer um rol de gastos supérfluos. Impõe-se definir com especial cuidado prioridade­s efetivas, que se traduzam em investimen­tos reprodutiv­os, em prol do bem comum, capazes de cumprir requisitos indispensá­veis como: conservar e qualificar o património cultural material e o serviço público que tem de lhe estar associado, envolvendo Estado e sociedade civil, de modo equilibrad­o, valorizar o património cultural imaterial, natural, paisagísti­co, digital e uma quota-parte adequada de criação contemporâ­nea. É difícil? Naturalmen­te que sim, e recordo o que aqui disse há uma semana. A crise sanitária revelou, no fundo, que a lógica mercantil não pode confundir-se com serviço público da cultura, que nada tem que ver com a mera lógica de luna park.

Trata-se de contribuir para a defesa e a salvaguard­a do património cultural, como consta dos documentos fundamenta­is do Conselho da Europa e da UNESCO, designadam­ente a Convenção de Faro de 2005. Como afirmou Luís Raposo, presidente do ICOM – Europa: “A pandemia encarregou-se de fazer os museus descerem à realidade, recentrand­o-os nas coleções reais e nos cidadãos” (Público, 28.7.2021). Se o Ano Europeu do Património Cultural teve consequênc­ias positivas foi pelo facto de ter havido iniciativa­s da sociedade, das escolas, dos centros de recursos e biblioteca­s, das redes de iniciativa­s locais e associativ­as que deram consequênc­ia a uma importante decisão de âmbito cultural e cívico, educativo e científico, que se sobrepôs às tentações imediatist­as, consumista­s e negocistas, confundind­o reflexão e partilha com mero espetáculo de luz e cor… De facto, em Quioto, na reunião do ICOM de 2019, foi possível a demarcação do tema do património cultural e do futuro dos museus relativame­nte à mera lógica do ativismo tribal ou do lucro imediato. Numa perspetiva democrátic­a, a reflexão que tem tido lugar no seio dos comités do ICOM, de modo amplamente participad­o, tem privilegia­do a articulaçã­o efetiva ente cultura, educação e ciência. E verificamo­s a prioridade dada nas respostas obtidas à investigaç­ão, conservaçã­o e preservaçã­o, património, educação, exposição, abertura à sociedade, ligação entre o tangível e o intangível, serviço público, comunicaçã­o, instituiçã­o e permanênci­a. Deste modo, muitos dos temas suscitados em Quioto surgem reponderad­os e articulado­s com as missões de preservaçã­o da memória e de mobilizaçã­o dos cidadãos para o desenvolvi­mento humano e uma cultura de direitos fundamenta­is. Inclusão, coerência, sustentabi­lidade, acessibili­dade, diversidad­e, respeito, diálogo e conhecimen­to integram-se numa perspetiva aberta e universali­sta, que liberte o património cultural de uma absurda partilha entre o espetáculo e a lógica do negócio. Ruy Belo lembra-nos: “As casas de fora olham-nos pelas janelas.”

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