Património e memória
A crise sanitária revelou, no fundo, que a lógica mercantil não pode confundir-se com serviço público da cultura, que nada tem que ver com a mera lógica de luna park.
Acrise pandémica obriga a tirar consequências urgentes relativamente a questões que muitos julgariam apenas considerar num prazo longínquo e incerto. Tornou-se evidente que as atividades culturais foram fortemente afetadas. Daí serem essenciais respostas necessárias e urgentes. É certo que as novas tecnologias de informação e comunicação e as soluções digitais permitiram a criação de sucedâneos não presenciais e transmissões à distância. No entanto, as respostas são insuficientes, em especial pelo carácter precário das soluções e pela ausência de condições sociais e materiais que permitam aos agentes culturais a preservação de condições essenciais para uma atividade em benefício de todos. Assim, tem de considerar-se o Plano de Recuperação para apoio ao património cultural e à cultura em geral como componentes fundamentais de um programa de urgência. Não se trata de mobilizar recursos “para europeu ver” e muito menos de fazer um rol de gastos supérfluos. Impõe-se definir com especial cuidado prioridades efetivas, que se traduzam em investimentos reprodutivos, em prol do bem comum, capazes de cumprir requisitos indispensáveis como: conservar e qualificar o património cultural material e o serviço público que tem de lhe estar associado, envolvendo Estado e sociedade civil, de modo equilibrado, valorizar o património cultural imaterial, natural, paisagístico, digital e uma quota-parte adequada de criação contemporânea. É difícil? Naturalmente que sim, e recordo o que aqui disse há uma semana. A crise sanitária revelou, no fundo, que a lógica mercantil não pode confundir-se com serviço público da cultura, que nada tem que ver com a mera lógica de luna park.
Trata-se de contribuir para a defesa e a salvaguarda do património cultural, como consta dos documentos fundamentais do Conselho da Europa e da UNESCO, designadamente a Convenção de Faro de 2005. Como afirmou Luís Raposo, presidente do ICOM – Europa: “A pandemia encarregou-se de fazer os museus descerem à realidade, recentrando-os nas coleções reais e nos cidadãos” (Público, 28.7.2021). Se o Ano Europeu do Património Cultural teve consequências positivas foi pelo facto de ter havido iniciativas da sociedade, das escolas, dos centros de recursos e bibliotecas, das redes de iniciativas locais e associativas que deram consequência a uma importante decisão de âmbito cultural e cívico, educativo e científico, que se sobrepôs às tentações imediatistas, consumistas e negocistas, confundindo reflexão e partilha com mero espetáculo de luz e cor… De facto, em Quioto, na reunião do ICOM de 2019, foi possível a demarcação do tema do património cultural e do futuro dos museus relativamente à mera lógica do ativismo tribal ou do lucro imediato. Numa perspetiva democrática, a reflexão que tem tido lugar no seio dos comités do ICOM, de modo amplamente participado, tem privilegiado a articulação efetiva ente cultura, educação e ciência. E verificamos a prioridade dada nas respostas obtidas à investigação, conservação e preservação, património, educação, exposição, abertura à sociedade, ligação entre o tangível e o intangível, serviço público, comunicação, instituição e permanência. Deste modo, muitos dos temas suscitados em Quioto surgem reponderados e articulados com as missões de preservação da memória e de mobilização dos cidadãos para o desenvolvimento humano e uma cultura de direitos fundamentais. Inclusão, coerência, sustentabilidade, acessibilidade, diversidade, respeito, diálogo e conhecimento integram-se numa perspetiva aberta e universalista, que liberte o património cultural de uma absurda partilha entre o espetáculo e a lógica do negócio. Ruy Belo lembra-nos: “As casas de fora olham-nos pelas janelas.”