Minoritários e xiitas, os “herdeiros” de Genghis Khan na mira dos talibãs
São perseguidos há mais de um século pela maioria pastune e considerados “não-crentes” pelos talibãs por serem xiitas. Estátua de um dos seus líderes foi destruída. Amnistia denunciou um massacre.
Em março de 1995, os talibãs torturaram e mataram Abdul Ali Mazari, um líder político da minoria étnica hazara, que perseguiram quando chegaram ao poder. Na semana passada, dois dias depois de assumirem o controlo em Cabul e dizerem que não iriam discriminar aqueles que não partilham os seus pontos de vista religiosos, destruíram a sua estátua, na província de Bamiyan. Após duas décadas de esperança, os hazaras temem agora o regresso aos massacres, à opressão e à discriminação e são um dos grupos de maior risco no Afeganistão. Mas quem estes afegãos que acreditam serem descendentes do imperador mongol Genghis Khan?
Os hazaras são o terceiro maior grupo étnico no Afeganistão, depois da maioria pastune e dos tajiques, representando cerca de 10% da população. Têm duas características que os diferenciam. Em primeiro lugar, os seus traços físicos mongóis (apesar de também terem ascendência persa e turcomana). Os historiadores dizem que não serão descendentes de Genghis Khan, mas poderão ser do seu exército, que invadiu o território no início do século XIII (apesar de a primeira referência aos hazaras só surgir no século XVI). Em segundo lugar, são xiitas.
Os talibãs, que seguem uma visão rígida do sunismo, consideraram-nos takfir, isto é, não crentes. Na década de 1990, um comandante talibã terá dito: “Os hazaras não são muçulmanos, podem matá-los”, havendo relatos de vários massacres. Em agosto de 1998, por exemplo, estima-se que entre dois mil a 20 mil hazaras (a maioria homens em idade de combate) terão sido mortos em Mazar-i-Sharif, em represália pela morte de três mil prisioneiros talibãs (não às mãos dos hazaras).
Mas a perseguição a esta minoria não é exclusiva dos talibãs, tendo começado há mais de um século. Os hazaras, que falam hazaragi (um dialeto que é derivado do dari, que por sua vez deriva do persa), prosperaram nos vales na região de Hazarajat, no centro do Afeganistão, mas acabariam por se refugiar nas montanhas ou até no atual Irão e Paquistão, após serem perseguidos pelos líderes pastunes, nomeadamente na década de 1880 por Abdur Rahman Khan – quando metade terão sido mortos. A resistência e qualquer tentativa de rebelião falharam e os hazaras acabariam por ver os seus direitos negados no século seguinte.
Durante a guerra civil afegã, após a retirada dos soviéticos em 1989, os hazaras tinham o seu próprio grupo de resistência, apoiado pelo Irão, tendo lutado contra os talibãs, que ficaram no poder de 1996 a 2001. A queda dos talibãs, após a invasão norte-americana, abriu-lhes as portas – chegaram a ter seis ministros no governo de Hamid Karzai –, com a nova Constituição de 2004 a garantir-lhes os mesmos direitos dos outros afegãos. Contudo, as suas comunidades continuaram a ser das mais pobres do Afeganistão e os hazaras alvo de ataques, não só dos talibãs, mas de grupos terrorista como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico, que atacou as suas escolas ou hospitais.
Novo massacre
Na abertura de uma sessão especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a alta comissária Michelle Bachelet disse ontem que o seu gabinete tem recebido “relatos credíveis” de abusos por parte dos talibãs, incluindo execuções sumárias de civis ou restrições aos direitos das mulheres. Apesar de considerar que a forma como as mulheres serão tratadas representa uma “linha vermelha”, a antiga presidente chilena e ex-responsável pela ONU Mulheres não esqueceu outros grupos em risco.
“As diversas minorias étnicas e religiosas do Afeganistão também correm o risco de violência e repressão, dado anteriores padrões de sérias violações sob o regime dos talibãs e relatos de mortes e ataques direcionados nos últimos meses”, acrescentou. Bachelet lembrou que os porta-vozes do grupo disseram, depois de assumir o controlo de Cabul, que iriam respeitar o direito dessas minorias, explicando que eles têm agora o “ónus da prova” e que não cumprir a palavra irá “minar a legitimidade” do grupo. E defendeu um “diálogo genuíno e inclusivo” que as inclua na formação de um governo.
A alta-comissária para os Direitos Humanos da ONU não especificou, mas uma das minorias a que se referia eram os hazaras. Na passada sexta-feira, a Amnistia Internacional denunciou o massacre de nove homens hazara às mãos dos talibãs, após assumirem o contro
Há duas características que distinguem os hazaras: os seus traços físicos mongóis e o facto de serem xiitas num país onde a maioria é sunita.
lo da província de Ghazni, no início de julho. “Seis dos homens foram mortos a tiro e três foram torturados até à morte, incluindo um homem que foi estrangulado com o seu próprio lenço e teve os músculos do braço decepados”, segundo indicaram as testemunhas à organização, que teve acesso também a registos fotográficos destes crimes.
Destruição da estátua
“As pessoas estão tristes com o que aconteceu, mas estão especialmente com medo”, disse à agência AFP uma habitante de Bamiyan, depois de a estátua de Abdul Ali Mazari – declarado mártir nacional em 2016 – ter sido destruída. “Não é claro se a estátua foi atingida por rockets ou rebentada com dinamite. Apesar de os talibãs não terem assumido a responsabilidade, a destruição envia um sinal muito poderoso e simbólico já que a maioria dos hazaras vê Mazari como um líder político que foi morto quando estava preso pelos talibãs”, afirmou por seu lado Niamatullah Ibrahimi, professor especialista no tema, citado pela France24.
Em 1995, os talibãs disseram que Mazari morreu num tiroteio quando ia ser transportado de helicóptero, depois de ter roubado uma Kalashnikov e matado seis talibãs.