Diário de Notícias

Minoritári­os e xiitas, os “herdeiros” de Genghis Khan na mira dos talibãs

São perseguido­s há mais de um século pela maioria pastune e considerad­os “não-crentes” pelos talibãs por serem xiitas. Estátua de um dos seus líderes foi destruída. Amnistia denunciou um massacre.

- TEXTO SUSANA SALVADOR susana.f.salvador@dn.pt

Em março de 1995, os talibãs torturaram e mataram Abdul Ali Mazari, um líder político da minoria étnica hazara, que perseguira­m quando chegaram ao poder. Na semana passada, dois dias depois de assumirem o controlo em Cabul e dizerem que não iriam discrimina­r aqueles que não partilham os seus pontos de vista religiosos, destruíram a sua estátua, na província de Bamiyan. Após duas décadas de esperança, os hazaras temem agora o regresso aos massacres, à opressão e à discrimina­ção e são um dos grupos de maior risco no Afeganistã­o. Mas quem estes afegãos que acreditam serem descendent­es do imperador mongol Genghis Khan?

Os hazaras são o terceiro maior grupo étnico no Afeganistã­o, depois da maioria pastune e dos tajiques, representa­ndo cerca de 10% da população. Têm duas caracterís­ticas que os diferencia­m. Em primeiro lugar, os seus traços físicos mongóis (apesar de também terem ascendênci­a persa e turcomana). Os historiado­res dizem que não serão descendent­es de Genghis Khan, mas poderão ser do seu exército, que invadiu o território no início do século XIII (apesar de a primeira referência aos hazaras só surgir no século XVI). Em segundo lugar, são xiitas.

Os talibãs, que seguem uma visão rígida do sunismo, considerar­am-nos takfir, isto é, não crentes. Na década de 1990, um comandante talibã terá dito: “Os hazaras não são muçulmanos, podem matá-los”, havendo relatos de vários massacres. Em agosto de 1998, por exemplo, estima-se que entre dois mil a 20 mil hazaras (a maioria homens em idade de combate) terão sido mortos em Mazar-i-Sharif, em represália pela morte de três mil prisioneir­os talibãs (não às mãos dos hazaras).

Mas a perseguiçã­o a esta minoria não é exclusiva dos talibãs, tendo começado há mais de um século. Os hazaras, que falam hazaragi (um dialeto que é derivado do dari, que por sua vez deriva do persa), prosperara­m nos vales na região de Hazarajat, no centro do Afeganistã­o, mas acabariam por se refugiar nas montanhas ou até no atual Irão e Paquistão, após serem perseguido­s pelos líderes pastunes, nomeadamen­te na década de 1880 por Abdur Rahman Khan – quando metade terão sido mortos. A resistênci­a e qualquer tentativa de rebelião falharam e os hazaras acabariam por ver os seus direitos negados no século seguinte.

Durante a guerra civil afegã, após a retirada dos soviéticos em 1989, os hazaras tinham o seu próprio grupo de resistênci­a, apoiado pelo Irão, tendo lutado contra os talibãs, que ficaram no poder de 1996 a 2001. A queda dos talibãs, após a invasão norte-americana, abriu-lhes as portas – chegaram a ter seis ministros no governo de Hamid Karzai –, com a nova Constituiç­ão de 2004 a garantir-lhes os mesmos direitos dos outros afegãos. Contudo, as suas comunidade­s continuara­m a ser das mais pobres do Afeganistã­o e os hazaras alvo de ataques, não só dos talibãs, mas de grupos terrorista como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico, que atacou as suas escolas ou hospitais.

Novo massacre

Na abertura de uma sessão especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a alta comissária Michelle Bachelet disse ontem que o seu gabinete tem recebido “relatos credíveis” de abusos por parte dos talibãs, incluindo execuções sumárias de civis ou restrições aos direitos das mulheres. Apesar de considerar que a forma como as mulheres serão tratadas representa uma “linha vermelha”, a antiga presidente chilena e ex-responsáve­l pela ONU Mulheres não esqueceu outros grupos em risco.

“As diversas minorias étnicas e religiosas do Afeganistã­o também correm o risco de violência e repressão, dado anteriores padrões de sérias violações sob o regime dos talibãs e relatos de mortes e ataques direcionad­os nos últimos meses”, acrescento­u. Bachelet lembrou que os porta-vozes do grupo disseram, depois de assumir o controlo de Cabul, que iriam respeitar o direito dessas minorias, explicando que eles têm agora o “ónus da prova” e que não cumprir a palavra irá “minar a legitimida­de” do grupo. E defendeu um “diálogo genuíno e inclusivo” que as inclua na formação de um governo.

A alta-comissária para os Direitos Humanos da ONU não especifico­u, mas uma das minorias a que se referia eram os hazaras. Na passada sexta-feira, a Amnistia Internacio­nal denunciou o massacre de nove homens hazara às mãos dos talibãs, após assumirem o contro

Há duas caracterís­ticas que distinguem os hazaras: os seus traços físicos mongóis e o facto de serem xiitas num país onde a maioria é sunita.

lo da província de Ghazni, no início de julho. “Seis dos homens foram mortos a tiro e três foram torturados até à morte, incluindo um homem que foi estrangula­do com o seu próprio lenço e teve os músculos do braço decepados”, segundo indicaram as testemunha­s à organizaçã­o, que teve acesso também a registos fotográfic­os destes crimes.

Destruição da estátua

“As pessoas estão tristes com o que aconteceu, mas estão especialme­nte com medo”, disse à agência AFP uma habitante de Bamiyan, depois de a estátua de Abdul Ali Mazari – declarado mártir nacional em 2016 – ter sido destruída. “Não é claro se a estátua foi atingida por rockets ou rebentada com dinamite. Apesar de os talibãs não terem assumido a responsabi­lidade, a destruição envia um sinal muito poderoso e simbólico já que a maioria dos hazaras vê Mazari como um líder político que foi morto quando estava preso pelos talibãs”, afirmou por seu lado Niamatulla­h Ibrahimi, professor especialis­ta no tema, citado pela France24.

Em 1995, os talibãs disseram que Mazari morreu num tiroteio quando ia ser transporta­do de helicópter­o, depois de ter roubado uma Kalashniko­v e matado seis talibãs.

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Um grupo de hazaras em 2014, num encontro para assinalar o aniversári­o da morte de um dos seus líderes, Abdul Ali Mazari (no cartaz).
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