Honrar os soldados mortos no Afeganistão
Sobre a reação dos aliados dos Estados Unidos à retirada do Afeganistão depois de duas décadas de presença militar e mais de 3500 mortos repartidos por vários contingentes, o TheWashington Post publicou há dias um artigo intitulado “Valeu a pena? As nações que enviaram tropas para o Afeganistão lidam com dificuldade com a queda de Cabul”. E o diário americano dava o exemplo do parlamento britânico, cuja Câmara dos Comuns até interrompeu as férias para debater as razões e as consequências da retirada americana 20 anos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas de Nova Iorque.
A emotividade tem sido especialmente grande no Reino Unido, que sofreu mais de 500 baixas no Afeganistão, mas que desde o primeiro momento esteve na linha da frente do apoio ao ataque americano aos talibãs, protetores da Al-Qaeda de Bin Laden, o responsável pelos atentados. Embora meia centena de britânicos estivessem entre as quase três mil vítimas do maior ato terrorista da história, foi sobretudo o dever de aliado tradicional dos Estados Unidos que contou no momento de o então primeiro-ministro Tony Blair apoiar o presidente americano GeorgeW. Bush. Hoje, quando o governo de Boris Johnson admite já diálogo com os talibãs, Blair critica a retirada decidida pelo americano Joe Biden, que confiou excessivamente na capacidade do exército afegão de resistir aos rebeldes fundamentalistas islâmicos. E não falta entre os britânicos quem se questione porque se enviou jovens para combater e morrer se tudo era para acabar como começou: com os talibãs a governar, oprimindo as mulheres e as minorias não pastunes e protegendo a Al-Qaeda.
Em Portugal, é grande também o choque com a retirada decidida por Biden, numa rara coincidência de ponto de vista com Donald Trump, o seu antecessor que abriu negociações com os talibãs. Os militares portugueses responderam ao apelo americano há 20 anos e integraram a ISAF, a força multinacional aprovada pela ONU e liderada pela NATO. Os sucessivos governos, de esquerda como de direita, foram solidários com a decisão inicial de participar no esforço de combate aos talibãs tomada no tempo de António Guterres, hoje secretário-geral da ONU e que já alertou para o mundo não deixar o Afeganistão voltar a ser um santuário terrorista.
Desde 2014, a ISAF deu lugar a outra missão liderada pela NATO, mais pequena em efetivos porque confiava na capacidade do novo exército afegão. E Portugal continuou a dar o seu contributo para uma guerra que desde o primeiro dia o mundo considerou justa. Na semana passada, o ministro da Defesa fez aqui no DN um balanço desse contributo generoso de Portugal para destruir a Al-Qaeda e afastar do poder esses “estudantes de religião” que apoiavam o terrorismo jihadista e proibiam as meninas de ir às escola. João Gomes Cravinho falou também da parte difícil, os feridos e os dois mortos: “Este momento é, sem dúvida, difícil, mas não nos devemos esquecer de que a história dos militares portugueses no Afeganistão é uma história que merece o nosso orgulho e respeito. É uma história de compromisso, dedicação e sacrifício, e temos o dever de recordar que no Afeganistão perdemos dois dos nossos melhores, o primeiro-sargento de infantaria comando João Roma Pereira e o soldado paraquedista Sérgio Pedrosa.Vários outros regressaram feridos.”
Estive no Afeganistão em 2005 e participei numa patrulha com blindados em Cabul onde estava João Roma Pereira. O veículo onde segui, juntamente com o repórter fotográfico Leonardo Negrão, era comandado pelo sargento Carlos Barry, mais tarde ferido em Kandahar.Voltei com o sentimento de grande admiração por estes militares que se dispõem a lutar a milhares de quilómetros de casa para que alguns sítios do mundo sejam um pouco melhores. E ao mesmo tempo defendem Portugal e dão prestígio ao país. Nas Torres Gémeas morreram cinco portugueses.
Sobre o que deve Portugal agora fazer, perante o inesperado sucesso total dos talibãs, é honrar a memória dos seus militares mortos e apoiar os futuros esforços da comunidade internacional para impedir que o Afeganistão de 2021 volte a ser igual ao de 2001. E, entretanto, acolher os afegãos e famílias que trabalharam com os nossos militares e por isso se tornaram agora alvos (o Reino Unido prepara-se para acolher 20 mil).
O Afeganistão, apesar da persistência dos ataques talibãs e de alguns erros da comunidade internacional, foi durante a presença da ISAF um país muito melhor do que era antes – basta pensar nos direitos das mulheres. E mesmo Biden, chocado com os mais de dois mil americanos que lá morreram e por isso cansado da guerra, sabe disso.