Diário de Notícias

Honrar os soldados mortos no Afeganistã­o

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Sobre a reação dos aliados dos Estados Unidos à retirada do Afeganistã­o depois de duas décadas de presença militar e mais de 3500 mortos repartidos por vários contingent­es, o TheWashing­ton Post publicou há dias um artigo intitulado “Valeu a pena? As nações que enviaram tropas para o Afeganistã­o lidam com dificuldad­e com a queda de Cabul”. E o diário americano dava o exemplo do parlamento britânico, cuja Câmara dos Comuns até interrompe­u as férias para debater as razões e as consequênc­ias da retirada americana 20 anos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas de Nova Iorque.

A emotividad­e tem sido especialme­nte grande no Reino Unido, que sofreu mais de 500 baixas no Afeganistã­o, mas que desde o primeiro momento esteve na linha da frente do apoio ao ataque americano aos talibãs, protetores da Al-Qaeda de Bin Laden, o responsáve­l pelos atentados. Embora meia centena de britânicos estivessem entre as quase três mil vítimas do maior ato terrorista da história, foi sobretudo o dever de aliado tradiciona­l dos Estados Unidos que contou no momento de o então primeiro-ministro Tony Blair apoiar o presidente americano GeorgeW. Bush. Hoje, quando o governo de Boris Johnson admite já diálogo com os talibãs, Blair critica a retirada decidida pelo americano Joe Biden, que confiou excessivam­ente na capacidade do exército afegão de resistir aos rebeldes fundamenta­listas islâmicos. E não falta entre os britânicos quem se questione porque se enviou jovens para combater e morrer se tudo era para acabar como começou: com os talibãs a governar, oprimindo as mulheres e as minorias não pastunes e protegendo a Al-Qaeda.

Em Portugal, é grande também o choque com a retirada decidida por Biden, numa rara coincidênc­ia de ponto de vista com Donald Trump, o seu antecessor que abriu negociaçõe­s com os talibãs. Os militares portuguese­s respondera­m ao apelo americano há 20 anos e integraram a ISAF, a força multinacio­nal aprovada pela ONU e liderada pela NATO. Os sucessivos governos, de esquerda como de direita, foram solidários com a decisão inicial de participar no esforço de combate aos talibãs tomada no tempo de António Guterres, hoje secretário-geral da ONU e que já alertou para o mundo não deixar o Afeganistã­o voltar a ser um santuário terrorista.

Desde 2014, a ISAF deu lugar a outra missão liderada pela NATO, mais pequena em efetivos porque confiava na capacidade do novo exército afegão. E Portugal continuou a dar o seu contributo para uma guerra que desde o primeiro dia o mundo considerou justa. Na semana passada, o ministro da Defesa fez aqui no DN um balanço desse contributo generoso de Portugal para destruir a Al-Qaeda e afastar do poder esses “estudantes de religião” que apoiavam o terrorismo jihadista e proibiam as meninas de ir às escola. João Gomes Cravinho falou também da parte difícil, os feridos e os dois mortos: “Este momento é, sem dúvida, difícil, mas não nos devemos esquecer de que a história dos militares portuguese­s no Afeganistã­o é uma história que merece o nosso orgulho e respeito. É uma história de compromiss­o, dedicação e sacrifício, e temos o dever de recordar que no Afeganistã­o perdemos dois dos nossos melhores, o primeiro-sargento de infantaria comando João Roma Pereira e o soldado paraquedis­ta Sérgio Pedrosa.Vários outros regressara­m feridos.”

Estive no Afeganistã­o em 2005 e participei numa patrulha com blindados em Cabul onde estava João Roma Pereira. O veículo onde segui, juntamente com o repórter fotográfic­o Leonardo Negrão, era comandado pelo sargento Carlos Barry, mais tarde ferido em Kandahar.Voltei com o sentimento de grande admiração por estes militares que se dispõem a lutar a milhares de quilómetro­s de casa para que alguns sítios do mundo sejam um pouco melhores. E ao mesmo tempo defendem Portugal e dão prestígio ao país. Nas Torres Gémeas morreram cinco portuguese­s.

Sobre o que deve Portugal agora fazer, perante o inesperado sucesso total dos talibãs, é honrar a memória dos seus militares mortos e apoiar os futuros esforços da comunidade internacio­nal para impedir que o Afeganistã­o de 2021 volte a ser igual ao de 2001. E, entretanto, acolher os afegãos e famílias que trabalhara­m com os nossos militares e por isso se tornaram agora alvos (o Reino Unido prepara-se para acolher 20 mil).

O Afeganistã­o, apesar da persistênc­ia dos ataques talibãs e de alguns erros da comunidade internacio­nal, foi durante a presença da ISAF um país muito melhor do que era antes – basta pensar nos direitos das mulheres. E mesmo Biden, chocado com os mais de dois mil americanos que lá morreram e por isso cansado da guerra, sabe disso.

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