Reforma eleitoral: amanhã é sempre longe de mais
Aexperiência ensinou-me que abundam, em Portugal, os “democratas constitucionais não praticantes” – uma penosa circunstância. Há vários trechos que parecem estar na Constituição para não cumprir e respeitar, como numa montra de inertes. Embelezam, mas sem substância útil. Fazem parte da paisagem.
Numa dessas matérias, de que falo várias vezes, diz-se assim: “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a divisão distrital no espaço por elas não abrangido.” E tem mais, a seguir.
Não pensem que estou a mentir. Podem conferir no artigo 291.º. Há uma mentira, mas não é minha; é da Constituição. Está lá desde 1976 – e estava bem. Mas, desde finais dos anos 1980, evoluiu para a mentira quase completa de hoje: a política entrou a desmantelar os distritos em todas as vertentes, em marés sucessivas de centralização administrativa brutal, alimentando um movimento contínuo de abandono e desertificação de cidades e territórios. A Constituição ainda pia como coruja no seu galho, mas a coruja jaz morta e embalsamada.
Outra matéria de primeira importância é a reforma eleitoral para a Assembleia da República, necessidade longamente sentida. O que diz o artigo 149.º da Constituição? Diz isto: “Os deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respetiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.” A seguir, acrescenta a possibilidade ainda de um círculo nacional.
Um recém-chegado pergunta: onde estão os círculos uninominais? E o círculo nacional? E o respondente oficioso balbucia que o sistema original não era assim, que se trata de uma novidade constitucional. O recém-chegado quer saber: ah! uma reforma constitucional recente, não? O respondente oficioso precisa: uma reforma de 1997. O recém-chegado espanta-se: enganou-se, quis dizer certamente 2017. O respondente oficioso repete: não, não, é mesmo de 1997. Pareceu corar quando o disse – e não é caso para menos.
Nas últimas legislativas, a abstenção foi de 51,4%, mais de 5,5 milhões de eleitores inscritos votaram com os pés. É inconcebível que um país com doença gravíssima no sistema eleitoral, que contamina a saúde da democracia, envenena a credibilidade do sistema partidário e mina a confiança no sistema político, desperdice, eleição a eleição, as ferramentas à disposição para resolver os problemas e garantir a boa qualidade da democracia.
O sistema misto de representação proporcional personalizada para que a Constituição aponta, desde 1997, é um sistema com provas dadas, bem ajustado às nossas necessidades, capaz de assegurar a representação justa dos cidadãos, do território e das correntes políticas. A proposta que a APDQ e a SEDES têm desenvolvido é a sua demonstração concreta e evidente. No dia de hoje, tem novo desenvolvimento: a apresentação do desenho dos círculos uninominais que, em articulação com os plurinominais, constituem o essencial da nova arquitectura do sistema. Vamos poder ter os nossos deputados.
A apresentação respira como os círculos uninominais, introduzidos num sistema proporcional, são o game changer, a peça que faltava, a alavanca de mudança, o toque de Midas. É determinante que os cidadãos o entendam e façam ouvir a sua vontade. Ao fim de 24 anos à espera, é evidente que esta devolução da democracia à cidadania só se fará se a cidadania se levantar e a reconquistar.
Como se canta no belíssimo tema dos Resistência, amanhã é sempre longe de mais. Esta reforma democrática, absolutamente vital, já devia estar aprovada ontem. A partir da sociedade civil, insistiremos no necessário.