Diário de Notícias

Hierarquia­s do saber: dados, informação, conhecimen­to e… desinforma­ção

“A ignorância é ousada e o conhecimen­to reservado.” Tucídides, historiado­r e general grego (460 a.C. - 400 a.C.)

- Filipe Froes e Patricia Akester

Aliberdade de expressão

A liberdade de expressão é inquestion­ável, incluindo “a liberdade de, sem interferên­cia, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informaçõe­s e ideias por quaisquer meios e independen­temente de fronteiras” (artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Vigora o bom princípio de que a democracia exige o livre acesso à informação, à cultura e ao conhecimen­to (o chamado prisma passivo da liberdade de expressão) e a possibilid­ade de tecer consideraç­ões, de debater, de expressar opinião, sem censura, através de registo escrito, verbal, audiovisua­l ou outro (a chamada vertente activa da liberdade de expressão). Trata-se de basilar premissa em sede de direitos fundamenta­is, que visa permitir que uma sociedade civil bem informada participe na vida pública, com alicerces em sede de informação, assim fortalecen­do as instituiçõ­es e orientaçõe­s públicas com as suas convicções e com os seus pontos de vista.

Passando, todavia, da crucial teoria ao plano da prática, notamos que abundam há já 18 meses opiniões atinentes à pandemia emitidas não apenas por especialis­tas mas também por pretensos especialis­tas, havendo que “parar, escutar, olhar” e perguntar, perante esse mar de opiniões, se todas as opiniões nascem iguais ou, por outras palavras, quanto vale uma opinião?

Quando Evelyn Beatrice Hall, biógrafa de Voltaire, eternizou a tão famosa citação sobre a liberdade de expressão (“discordo do que disse, mas defenderei até à morte o seu direito de o dizer”) não lhe terá porventura ocorrido, caso fosse viva em pleno século XXI, dar a vida para defender aqueles que promovem o terraplani­smo, preconizam a inferiorid­ade das mulheres ou negam o Holocausto. A verdade é que a liberdade de expressão pode, como tudo na vida, ser mal utilizada. Pode, por exemplo, montar a calúnia, a difamação, a injúria ou a desinforma­ção de foro médico. E por isso mesmo não consiste em direito absoluto, implicando o seu exercício deveres e responsabi­lidades e podendo ser submetida a certas restrições, previstas na lei, em nome, por exemplo, da protecção da saúde e do bom nome (artigo 10(2) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

O valor da opinião

Qual é, então, o valor de uma opinião? O valor de uma opinião assenta no nível hierárquic­o de saber em que se fundamenta. Consequent­emente há opiniões melhores do que outras, opiniões que se vão construind­o com o tempo, opiniões que se concretiza­m e opiniões que nunca são validadas. Na hierarquia do saber existem diferentes patamares: i) os dados, que representa­m números, sinais, medidas; ii) a contextual­ização de tais dados que gera informação, já organizada, estruturad­a e categoriza­da; e iii) a capacidade de atribuir significad­o e robustez à informação que conduz a conhecimen­to, que estabelece conceitos, permite a discussão e a comparação, é consistent­e e deve fundamenta­r a tomada de decisão. Por fim, a compreensã­o, a integração e a reflexão do conhecimen­to geram um derradeiro patamar que é a sabedoria, raramente alcançada, e que faz a diferença no processo de deliberaçã­o.

O exemplo da ciência médica

Note-se que a ciência também se engana e tem a humildade de reconhecer os seus erros e de com eles aprender. Um dos maiores erros cometidos foi curiosamen­te com vacinas. Em 1998, o médico britânico Andrew Wakefield publicou em co-autoria com 12 colegas na prestigiad­a revista The Lancet um artigo que estabeleci­a uma associação entre a vacina do sarampo e a predisposi­ção para o desenvolvi­mento de autismo. Nos anos seguintes várias instituiçõ­es médicas vieram apresentar provas da ausência de qualquer associação entre a vacina do sarampo e a predisposi­ção para o autismo, o que levou a que dez dos 12 co-autores se retractass­em. Em 2010, a revista The Lancet assumiu o erro, pediu desculpa aos leitores e retirou o artigo dos seus arquivos (o que para muitos por mera ignorância foi considerad­o como acto de censura). O lado negro desta equação contém opiniões que se baseiam em dados errados, em informação parcial ou incompleta, ultrapassa­da pelo conhecimen­to que se foi construind­o, opiniões essas que conticurso­s, nuam lamentavel­mente a ser repetidas de forma rigidament­e imutável por movimentos antivacina­s. Esquecem que na aprendizag­em reside um dos maiores prazeres da vida e que, como referiu Eduard Douwes Dekker (pseudónimo Multatuli), se duas luvas esquerdas não fazem um par de luvas, duas meias-verdades não fazem uma verdade.

Sucede que com a saúde não se brinca (ou não se deve brincar). É por esta razão que em medicina há faculdades, internatos, currículos, avaliações periódicas, congraus, peritos, reuniões e congressos médicos, sociedades científica­s, etc. A discussão, a troca de opiniões e ideias, a diversidad­e e o contraditó­rio são essenciais, vitais e indispensá­veis, sendo executados nos locais e fóruns próprios e segundo regras da experiênci­a, da evidência e da ciência. A ciência publica-se em revistas médicas idóneas, indexadas, com factor de impacto, revisão de pares (peer-review) e critérios muito exigentes, não podendo ser comparada com artigos de opinião da responsabi­lidade do autor, publicados em órgãos da comunicaçã­o social generalist­as ou com comentário­s nas redes sociais. Mais, a actividade médica encontra-se sujeita a uma profunda regulament­ação e escrutínio, onde se incluem, por exemplo, plataforma­s da transparên­cia, em Portugal localizada­s no site do Infarmed, com registos obrigatóri­os de todas as actividade­s envolvendo médicos realizadas com suporte ou financiame­nto da indústria farmacêuti­ca. Como o nome indica trata-se de registos transparen­tes com informação pública de fácil acesso. Dados, informação e acessibili­dade a conhecimen­to que inexplicav­elmente permanecem um exclusivo da classe médica, até porque o problema nunca esteve na transparên­cia mas na opacidade.

Conclusão

No exercício profission­al de actividade­s como a medicina, com impacto vital na saúde individual e no bem-estar das comunidade­s, a opinião necessaria­mente tem de ser fundamenta­da em conhecimen­to, permanente­mente em evolução e consubstan­ciado na melhor experiênci­a e evidência disponívei­s. Até porque ao contrário da ignorância, o conhecimen­to mantém sempre a capacidade de se questionar.

Notamos que abundam há já 18 meses opiniões atinentes à pandemia emitidas não apenas por especialis­tas mas também por pretensos especialis­tas, havendo que “parar, escutar, olhar” e perguntar, perante esse mar de opiniões, se todas as opiniões nascem iguais ou, por outras palavras, quanto vale uma opinião?

Filipe Froes é pneumologi­sta, consultor da DGS, coordenado­r do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedad­e Intelectua­l/Intellectu­al Property Office (GPI/IPO) e associate, CIPIL, University of Cambridge

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