A verdadeira resistência aos talibãs
Nem o outrora poderoso exército governamental, nem a recém-ressuscitada resistência no vale do Panshir, muito menos aqueles que sobram dos senhores da guerra afegãos, de base étnica, como o usbeque Abdul Rashid Dostum. Depois da retirada dos Estados Unidos e seus aliados, negociada mas mal preparada, a verdadeira resistência ao regresso pleno dos talibãs ao poder no Afeganistão vem daqueles que lhes são próximos em termos de visão obscurantista do islão, mas adeptos de uma jihad contra o Ocidente, como se viu há dias no atentado no aeroporto de Cabul que matou quase duas centenas de pessoas, entre as quais 13 militares americanos.
Apesar da velha aliança com a Al-Qaeda, nascida dos laços entre o mullah Omar e Osama bin Laden, os talibãs sempre tiveram uma visão nacional do seu projeto de emirado e daí não ambicionarem um califado. E isso terá sido algo que não mudou de 2001, ano da sua queda, até hoje. A liderança do movimento, em especial o mullah Baradar, cofundador em 1994, com Omar, dos talibãs, tem feito um esforço de atualização que é essencial para a sua estratégia de conquista do poder e de manter o Ocidente militarmente à distância, mas que tem poucas hipóteses de resultar, dada a natureza dos próprios militantes, assim como a necessidade de competir com a célula do Estado Islâmico que lançou o suicida contra a multidão junto ao aeroporto na quinta-feira.
É preciso perceber que, se milhares de afegãos fogem do país por temer os talibãs, outros milhares apoiam-nos, sobretudo entre a comunidade pastune, maioritária. E quem combateu pela sua causa contra os americanos e o governo de Cabul, tido como fantoche, não quer agora um compromisso com o Ocidente nem cedências na sua visão de sociedade sem direitos para as mulheres e de opressão das minorias. O lado pragmático do movimento está assim longe de ter imposto o seu ponto de vista e até pode ter deserções, inclusive para o tal ISIS-K, o Estado Islâmico do Khorasan, que nasceu em 2015 da soma de talibãs afegãos desiludidos, de elementos dos chamados talibãs paquistaneses e de recrutas vindos de outros países islâmicos, todos unidos pelo voto de lealdade ao grupo que controlava então vastas regiões da Síria e do Iraque. No ISIS-K a convicção é de que os talibãs desistiram da jihad global e venderam a alma para regressar ao poder, negociando até com a América, que os bombardeou em 2001 por protegerem Bin Laden, o cérebro dos atentados contra as Torres Gémeas.
Para os talibãs, o ISIS-K é uma ameaça por ser um competidor, sempre disposto a mostrar mais fervor extremista para contrariar o esforço de pragmatismo de quem ambiciona ser aceite como governante legítimo pelas potências. Ironicamente, o novo Emirado Islâmico do Afeganistão pode ter-se visto livre da presença militar americana, mas ter agora de lidar com a ameaça jihadista.
Em guerra há mais de quatro décadas (dos soviéticos contra os mujaedines aos americanos contra os talibãs, passando pelos talibãs contra os mujaedines), a violência é assim o futuro mais provável do Afeganistão. Com os talibãs a poderem reagir ao ISIS-K apostando tudo numa legitimidade fundamentalista islâmica que seria o regresso puro e simples a 2001 para a sociedade afegã ou, tentando a tal via pragmática difícil de acreditar possível, transformar os americanos em aliados de conveniência, usando-os, e à sua necessidade de derrotar o jihadismo global, para se livrarem do principal adversário.