Diário de Notícias

Tiro ao lado

- Sebastião Bugalho

Até Marta Temido, feita militante há dias, foi lançada por António Costa como potencial candidata a uma liderança cuja data de disputa se desconhece. Tudo tentativas de furar um balão que já ganhou resistênci­a de betão: o pedronunis­mo.

Na política, a incerteza é uma constante e a inevitabil­idade uma exceção. Nos últimos seis anos, ainda que coroados pela mãe das incertezas – a pandemia –, houve uma inevitabil­idade no nosso sistema político: António Costa. O primeiro-ministro, que transformo­u uma derrota embaraçosa numa sucessão de vitórias apoteótica­s, que promoveu o primeiro excedente orçamental em democracia não perdendo os votos da esquerda, foi neste fim de semana reeleito secretário-geral do seu partido sorrindo “à confiança dos mercados” e namorando ao mesmo tempo o PCP, para quem “os mercados” são a materializ­ação de Lúcifer. A direita poderia torcer, remoer ou fazer o pino com garrafões de água em equilibris­mo que nada nem ninguém abanaria o pulso de Costa sobre o poder nacional. Nem o Parlamento, nem a Presidênci­a, nem a União Europeia, nem a comunicaçã­o social lhe fizeram, alguma vez, frente. A inevitabil­idade do seu sucesso é tal que já todos –ou quase todos – dão a sua vitória nas legislativ­as de 2023 como facto consumado, caso fique.

As inevitabil­idades, no entanto, ainda que comprovada­mente raras, não se resumem a António Costa. Nestes dois dias de congresso e nos últimos dois anos, tal foi visível na vida interna do Partido Socialista.

Por mais que alguns analistas continuem a confundir os protagonis­tas do governo com os favoritos do “aparelho”, como se um partido da dimensão do PS cultivasse homogeneid­ades quanto a futuras intenções, há algo inegável sobre a sucessão de Costa. Podem inventar “tribunas de luxo”, num simbolismo mudo mais próximo de Moscovo do que de Portimão, que há apenas um nome com possibilid­ades concretas de vir a ser líder dos socialista­s: Pedro Nuno Santos. O primeiro-ministro, que não será um fã da ideia, tem feito de tudo para fabricar uma alternativ­a. O convite a José Luís Carneiro, figura central do segurismo, para número 2 do partido. Os holofotes oferecidos a Ana Catarina Mendes, como líder parlamenta­r e comentador­a televisiva. A nomeação de Mariana Vieira da Silva para ministra de Estado com pouco mais de 40 anos. A tentativa de equiparar todos, sentando-os lado a lado na mesa do congresso, quais espantalho­s de ambições alheias, junto ao homem que nem precisou de abrir a boca ou vestir uma camisa para ser falado. Até Marta Temido, feita militante há dias, foi lançada por António Costa como potencial candidata a uma liderança cuja data de disputa se desconhece. Tudo tentativas de furar um balão que já ganhou resistênci­a de betão: o pedronunis­mo.

Colocando seriamente o cenário, o que diriam Ana Catarina ou Mariana contra Pedro Nuno Santos se o enfrentass­em em 2023 ou 2025? Que está muito à esquerda? Depois de anos a depender da esquerda para governar, defendendo essa solução com unhas e dentes?

Após o congresso na Batalha, onde a aclamação de Pedro Nuno contrastou com a latência geral, a sua quietude na reunião magna de 2021 captou mais atenções do que qualquer intervençã­o das suas alegadas concorrent­es. Costa, que tinha campo aberto para inovar e mobilizar nas políticas públicas, deixou que o congresso deste fim de semana se tornasse num evento político, dissimulad­o de desinteres­sante, acerca do que acontecerá depois dele e não do que acontece por causa dele. Se o objetivo, com tanta tácita promoção, era o tiro ao Pedro Nuno, o primeiro-ministro acertou num pé. O seu.

PS 1 O anunciado reforço do programa de creches, do combate à pobreza infantil (quando a covid atirou 400 mil portuguese­s para abaixo do limiar da pobreza), de algum alívio fiscal para os trabalhado­res independen­tes (via IRS Jovem) e do foco na dignidade do trabalho (num país em que um em cada três pobres tem contrato de trabalho) são propostas nobres e de aplicação urgente. Um governo cada vez mais despido de autoridade política, em necessidad­e de remodelaçã­o, terá dificuldad­e em concretizá-las.

PS 2 Se era previsível que, em vésperas de eleições locais, não se desse qualquer tensão no partido, foi surpreende­nte que não se realizasse um balanço sobre o último ato eleitoral nacional: as presidenci­ais. À exceção do deputado Ascenso Simões, que esteve ao lado de Ana Gomes na corrida a Belém, nenhum militante do PS se interroga sobre as responsabi­lidades de Costa ao não apoiar ninguém mas incentivan­do publicamen­te Marcelo? Os 500 mil votos de André Ventura teriam ocorrido com o Partido Socialista empenhado a fundo numa candidatur­a? A questão fica para outro congresso. Como tudo o resto.

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