Tiro ao lado
Até Marta Temido, feita militante há dias, foi lançada por António Costa como potencial candidata a uma liderança cuja data de disputa se desconhece. Tudo tentativas de furar um balão que já ganhou resistência de betão: o pedronunismo.
Na política, a incerteza é uma constante e a inevitabilidade uma exceção. Nos últimos seis anos, ainda que coroados pela mãe das incertezas – a pandemia –, houve uma inevitabilidade no nosso sistema político: António Costa. O primeiro-ministro, que transformou uma derrota embaraçosa numa sucessão de vitórias apoteóticas, que promoveu o primeiro excedente orçamental em democracia não perdendo os votos da esquerda, foi neste fim de semana reeleito secretário-geral do seu partido sorrindo “à confiança dos mercados” e namorando ao mesmo tempo o PCP, para quem “os mercados” são a materialização de Lúcifer. A direita poderia torcer, remoer ou fazer o pino com garrafões de água em equilibrismo que nada nem ninguém abanaria o pulso de Costa sobre o poder nacional. Nem o Parlamento, nem a Presidência, nem a União Europeia, nem a comunicação social lhe fizeram, alguma vez, frente. A inevitabilidade do seu sucesso é tal que já todos –ou quase todos – dão a sua vitória nas legislativas de 2023 como facto consumado, caso fique.
As inevitabilidades, no entanto, ainda que comprovadamente raras, não se resumem a António Costa. Nestes dois dias de congresso e nos últimos dois anos, tal foi visível na vida interna do Partido Socialista.
Por mais que alguns analistas continuem a confundir os protagonistas do governo com os favoritos do “aparelho”, como se um partido da dimensão do PS cultivasse homogeneidades quanto a futuras intenções, há algo inegável sobre a sucessão de Costa. Podem inventar “tribunas de luxo”, num simbolismo mudo mais próximo de Moscovo do que de Portimão, que há apenas um nome com possibilidades concretas de vir a ser líder dos socialistas: Pedro Nuno Santos. O primeiro-ministro, que não será um fã da ideia, tem feito de tudo para fabricar uma alternativa. O convite a José Luís Carneiro, figura central do segurismo, para número 2 do partido. Os holofotes oferecidos a Ana Catarina Mendes, como líder parlamentar e comentadora televisiva. A nomeação de Mariana Vieira da Silva para ministra de Estado com pouco mais de 40 anos. A tentativa de equiparar todos, sentando-os lado a lado na mesa do congresso, quais espantalhos de ambições alheias, junto ao homem que nem precisou de abrir a boca ou vestir uma camisa para ser falado. Até Marta Temido, feita militante há dias, foi lançada por António Costa como potencial candidata a uma liderança cuja data de disputa se desconhece. Tudo tentativas de furar um balão que já ganhou resistência de betão: o pedronunismo.
Colocando seriamente o cenário, o que diriam Ana Catarina ou Mariana contra Pedro Nuno Santos se o enfrentassem em 2023 ou 2025? Que está muito à esquerda? Depois de anos a depender da esquerda para governar, defendendo essa solução com unhas e dentes?
Após o congresso na Batalha, onde a aclamação de Pedro Nuno contrastou com a latência geral, a sua quietude na reunião magna de 2021 captou mais atenções do que qualquer intervenção das suas alegadas concorrentes. Costa, que tinha campo aberto para inovar e mobilizar nas políticas públicas, deixou que o congresso deste fim de semana se tornasse num evento político, dissimulado de desinteressante, acerca do que acontecerá depois dele e não do que acontece por causa dele. Se o objetivo, com tanta tácita promoção, era o tiro ao Pedro Nuno, o primeiro-ministro acertou num pé. O seu.
PS 1 O anunciado reforço do programa de creches, do combate à pobreza infantil (quando a covid atirou 400 mil portugueses para abaixo do limiar da pobreza), de algum alívio fiscal para os trabalhadores independentes (via IRS Jovem) e do foco na dignidade do trabalho (num país em que um em cada três pobres tem contrato de trabalho) são propostas nobres e de aplicação urgente. Um governo cada vez mais despido de autoridade política, em necessidade de remodelação, terá dificuldade em concretizá-las.
PS 2 Se era previsível que, em vésperas de eleições locais, não se desse qualquer tensão no partido, foi surpreendente que não se realizasse um balanço sobre o último ato eleitoral nacional: as presidenciais. À exceção do deputado Ascenso Simões, que esteve ao lado de Ana Gomes na corrida a Belém, nenhum militante do PS se interroga sobre as responsabilidades de Costa ao não apoiar ninguém mas incentivando publicamente Marcelo? Os 500 mil votos de André Ventura teriam ocorrido com o Partido Socialista empenhado a fundo numa candidatura? A questão fica para outro congresso. Como tudo o resto.