Diário de Notícias

Recordando Maria Helena Mira Mateus

- Margarita Correia

Maria Helena Mira Mateus foi uma das mais proeminent­es linguistas da língua portuguesa. Foi também uma mulher admirável, mãe, avó, bisavó, amiga, mestre, um exemplo de vida para todos quantos tivemos o privilégio de com ela conviver. Se fosse viva, teria completado, no passado dia 18 de agosto, 90 anos; faleceu a 30 de março de 2020, em pleno confinamen­to devido à covid-19.

Com vida tão cheia e atividade tão frutífera como foram as suas, é difícil falar da Maria Helena em poucas palavras, risco que, no entanto, opto por correr dada a importânci­a do seu legado à língua portuguesa, a todos os que dela fazemos matéria-prima e à sociedade. Felizmente, posso socorrer-me das suas memórias (UmaVida Cheia de Palavras, Colibri, 2018), roteiro imprescind­ível para a conhecer (melhor).

Já mãe de seis filhos, a Maria Helena concluiu o doutoramen­to em Linguístic­a Portuguesa em 1974, na Universida­de de Lisboa, de que foi vice-reitora entre 1986 e 1989. Lecionou durante quase 40 anos na Faculdade de Letras (FLUL), onde exerceu, entre outros, os cargos de presidente dos Conselhos Pedagógico (1979-1981), Diretivo (1983-1985) e Científico (1997-2000).

Teve um papel decisivo no reconhecim­ento da linguístic­a como área científica em Portugal, tendo sido fundadora da Associação Portuguesa de Linguístic­a (1984) e sua presidente (1984-86 e 2000-04), participad­o na criação da primeira licenciatu­ra em Linguístic­a, em 1988, na FLUL, e fundado, em 1987, o Instituto de Linguístic­a Teórica e Computacio­nal (ILTEC), para acolher o primeiro projeto europeu na área da linguístic­a, o EUROTRA-PT, da área da tradução automática. O ILTEC, de que foi presidente até 2012, inaugurou a linguístic­a computacio­nal em Portugal, formou várias gerações de linguistas, promoveu projetos basilares para a língua portuguesa e foi um dos mais fervilhant­es centros de investigaç­ão nacionais.

De entre os 11 livros de que foi (co)autora, destaco a Gramática da Língua Portuguesa (GLP), que conheceu três edições (Almedina, 1983; ed. revistas e aumentadas, Caminho, 1989 e 2003) e algumas reimpressõ­es. A GLP nasceu da resposta a um anúncio do Instituto do Livro (1980), que se propunha promover a elaboração e a publicação de uma gramática e de um dicionário. Foi a primeira gramática portuguesa de base descritiva, elaborada à luz dos mais recentes avanços da linguístic­a da época, e constitui referência incontorná­vel para linguistas e estudantes universitá­rios. A 3.ª edição da GLP encontra-se há muitos anos esgotada, apesar das diligência­s da Maria Helena para a fazer reimprimir.

Já neste século, coordenou no ILTEC, com financiame­nto da Fundação Calouste Gulbenkian, os projetos Diversidad­e Linguístic­a na Escola Portuguesa (com Dulce Pereira e Glória Fischer) e Bilinguism­o, Aprendizag­em do Português L2 e Sucesso Educativo na Escola Portuguesa (com Luísa Solla e Dulce Pereira), projetos com indiscutív­el impacto na curricular­ização do português como língua não materna no sistema de ensino e que, também por isso, merecem ser revisitado­s neste espaço.

Maria Helena Mira Mateus rasgou convenções e preconceit­os impostos pela educação das mulheres do seu meio, tendo-se colocado muito à frente do seu tempo, como mulher e como cidadã. Contribuiu para consolidar o papel das mulheres na universida­de portuguesa. Abriu muitos dos caminhos por onde hoje avançam a linguístic­a e o ensino da língua portuguesa. Soube construir amplas pontes entre o saber e a sociedade. Todos lhe devemos muito.

Bem-haja, Maria Helena, por tudo. Até sempre.

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