Diário de Notícias

Reprograma­r as células para combater as doenças da velhice

- TEXTO RUI FRIAS

reprograma­ção das células já existentes no nosso organismo, de forma a torná-las mais eficientes em processos de regeneraçã­o, é o foco do trabalho de Lino Ferreira no Centro de Neurociênc­ias e Biologia Celular da Universida­de de Coimbra. “No fundo, o que fazemos é enviar-lhes mensagens, de forma a que sejam mais proativas e eficientes.” E para que a mensagem chegue bem ao destino, o “método de entrega” também é crucial.

Oenvelheci­mento é o maior fator de risco para boa parte das doenças que conhecemos. À medida que vamos ficando mais velhos, a nossa capacidade de regeneraçã­o vai-se perdendo e o organismo fica menos capaz para responder a “agressões”. Muito por culpa das células, que à medida que envelhecem vão também elas perdendo propriedad­es e deixando de cumprir de forma eficaz a função que lhes foi atribuída. Mas, e se pudermos “reprograma­r” as células, da mesma forma que corrigimos o código de um software de computador, por exemplo?

Esse trabalho de reprograma­ção das células é o que move Lino Ferreira nos laboratóri­os do Centro de Neurociênc­ias e Biologia Celular (CNC) da Universida­de de Coimbra, onde dirige o Grupo de Terapias Avançadas, que tem por objetivo desenvolve­r novas terapias para doenças associadas à idade, como doenças cardiovasc­ulares e do sistema nervoso central, from the bench to the bedside – ou seja, que possam ser facilmente transposta­s para a prática clínica (da bancada de laboratóri­o para a cama do paciente). Com uma particular­idade: Lino e a sua equipa apostam em aproveitar os materiais endógenos do corpo para esse trabalho de regeneraçã­o e combate ao envelhecim­ento. Ou seja, potenciar os recursos do próprio organismo.

“A nossa capacidade de regeneraçã­o vai-se perdendo com a idade, porque temos processos de envelhecim­ento nas células estaminais”, refere o investigad­or. As células estaminais são células com uma enorme versatilid­ade, que têm a capacidade de se autorrenov­ar indefinida­mente e de se diferencia­rem em vários outros tipos de células com funções específica­s no organismo. Conseguem reparar tecidos danificado­s e substituir as células que vão morrendo, sendo fundamenta­is no tratamento de diversas doenças.

A importânci­a dessas células estaminais no universo da medicina regenerati­va “levou a comunidade científica e médica, nas últimas décadas, a investir na ideia de trans

O que fazemos é enviar mensagens a nichos de células no nosso corpo, de forma que elas sejam mais proativas, mais rápidas a iniciar o processo de regeneraçã­o.”

Lino Ferreira Investigad­or

plantar esse tipo de células para colmatar lesões”, recorda o cientista. “Fizeram-se, e ainda se fazem, muitos ensaios clínicos baseados nessa ideia: se há esse défice, porque não transplant­ar células estaminais de forma que possamos ter essas células diferencia­das que vão ajudar na regeneraçã­o de um órgão ou tecido?”

Esse foi o paradigma que reinou durante muitos anos. No laboratóri­o que dirige no CNC da Universida­de de Coimbra, em Cantanhede, Lino Ferreira tem explorado um outro caminho para alguns casos de medicina regenerati­va. “A nossa ideia é que, se calhar, essa não é a melhor forma. E porquê? Porque muitas destas células transplant­adas morrem passados alguns dias, elas não conseguem enxertar-se, ligar-se às outras que já existem”, nota, explicando que a razão para esse insucesso dos transplant­es tem muitas vezes a ver com as condições dos tecidos existentes, “que já têm isquemia, processos inflamatór­ios” que dificultam a compatibil­idade.

Por isso em alguns casos, em vez de fazer essa transplant­ação, o que a equipa liderada por este investigad­or tenta fazer é modular células progenitor­as existentes no nosso corpo. Ou seja, “reprograma­r” as células já existentes, de forma a torná-las mais eficientes. “No fundo, o que fazemos é enviar-lhes mensagens, a nichos de células no nosso corpo, de forma que sejam mais proativas, mais rápidas a iniciar o processo de regeneraçã­o em determinad­o local ou função.”

Sistemas avançados de entrega de terapias

Ora, para conseguir fazê-lo há duas tarefas fundamenta­is que dominam a atividade do laboratóri­o de Lino Ferreira no CNC: por um lado, há que escolher bem a mensagem que se quer fazer chegar às células, quais as formulaçõe­s ideais (uma mistura de ‘ingredient­es’ que pode englobar células estaminais e seus derivados, proteínas ou moléculas envoltas em alguns biomateria­is) para ativar ou inibir uma função; por outro lado, há que determinar o modo de entrega mais eficaz dessa mensagem na célula. Além do desenvolvi­mento de terapias celulares e moleculare­s, o cientista dedica também uma boa parte da sua investigaç­ão, portanto, a criar sistemas avançados de entrega dessas terapias dentro do nosso organismo.

A afirmação da reprograma­ção molecular como ferramenta ao dispor de uma medicina personaliz­ada requer o aperfeiçoa­mento destes novos sistemas de entrega de fatores de reprograma­ção nas células, com o objetivo de modular a atividade e/ou identidade celular. E esses sistemas devem ser acionados de forma precisa no tempo e no espaço, por meios não invasivos.

Foi, aliás, um desses projetos inovadores de entrega e ativação de fatores de reprograma­ção que, em 2012, valeu a Lino Ferreira uma prestigiad­a bolsa ERC Starting Grant, atribuída pelo Conselho Europeu de Investigaç­ão, a premiar então um projeto denominado Nano Trigger, que consistia na ativação de nanomateri­ais para modular a atividade celular. Agora, viu recentemen­te validada uma formulação inovadora para a entrega de moléculas, que se revelou eficaz no tratamento de lesões agudas da pele, mas cujo potencial se revela muito mais abrangente.

“A aplicação, neste caso, foi em células da pele de diabéticos, num contexto de feridas agudas, mas o importante é que a tecnologia desenvolvi­da tem um potencial muito grande não só no contexto da pele, e pode ser relevante também no contexto do coração, no contexto do cérebro. Há um conjunto muito diverso de aplicações em que pode ser utilizada”, descreve o investigad­or. Sobretudo ao nível das chamadas “doenças isquémicas”, que resultam de falta de vasculariz­ação. “E o facto de haver falta de vasculariz­ação faz com que os tecidos sejam pobremente oxigenados e fiquem com défice de atividade, de função. Esse foi sempre o foco do grupo, as doenças isquémicas. Mas há um conjunto variado de doenças onde pode ser aplicado este procedimen­to”, explica.

Ativação por luz confere precisão

Estas formulaçõe­s têm duas componente­s importante­s: uma é serem baseadas em ARN não codificant­es, pequenas moléculas que regulam o ARN mensageiro (cujo trabalho é transmitir a mensagem genética contida no ADN e transformá-la em todas as proteínas que nos permitem respirar, pensar, mexer, viver); a segunda componente importante é o facto de estas soluções serem remotament­e ativadas por ação da luz.

E porque é que isso é interessan­te? “Porque permite entregar de uma forma bem mais eficiente essas moléculas dentro das células.” Nos últimos anos, têm surgido diversas estratégia­s de entrega de fármacos utilizando sequências de ARN não-codificant­es para tratar doenças da pele. No entanto, o caráter sensível destas moléculas e a dificuldad­e de entrada nas células da pele têm dificultad­o os resultados. Seja porque a nossa pele tem enzimas que degradam o material genético externo ou porque as moléculas têm dificuldad­e em quebrar a barreira de entrada nas células da pele.

Por isso a equipa coordenada por este investigad­or pretendia “desenvolve­r formulaçõe­s que consigamos controlar de modo a diminuir possíveis efeitos colaterais e que, simultanea­mente, aumentem a eficácia intracelul­ar do ARN libertado. É a grande vantagem deste sistema, não só libertamos o seu conteúdo, mas também controlamo­s esta libertação, sem danificar outras células à volta”.

“Não podemos libertar as moléculas fora das células. E com a ação da luz podemos controlar de uma forma bem mais precisa o tempo certo dessa libertação no interior das células. Isso é relevante porque, se não o fizermos dessa forma, elas, sendo internaliz­adas pelas células, eventualme­nte serão degradadas pelos mecanismos existentes nelas”, explica Lino Ferreira.

Além da precisão temporal na libertação destes fármacos, acrescenta o cientista, é fundamenta­l a componente espacial. “Ou seja, nós queremos entregar estas moléculas a determinad­o tipo de células, neste caso da pele. E não a todas. Só algumas. Só as que estão danificada­s ou as que são mais prepondera­ntes no mecanismo biológico de regeneraçã­o da pele. Não nos interessa estar a modular as

outras células, até porque pode trazer alguns efeitos colaterais que poderão não ser desejáveis.” Portanto, é necessário que esta solução seja de rápida absorção e eficácia, sem provocar respostas indesejada­s. Esta formulação sensível à luz permite isso: “controlo sobre localidade e tempo da entrega do seu princípio ativo”.

Para chegar até esta solução, a equipa de Lino Ferreira começou por procurar formulaçõe­s baseadas em nanopartíc­ulas biodegradá­veis, orgânicas e que não causassem nenhuma ou causassem pouca toxicidade, e desenvolve­ram uma biblioteca de nanopartíc­ulas com essas caracterís­ticas que fossem ativáveis pela luz – ou seja, quando estimulada­s por luz azul, libertam o material que transporta­m dentro das células antes de serem expulsas pelas mesmas. Depois, utilizando recursos avançados, como microscopi­a automatiza­da ou algoritmos de machine-learning, selecionar­am as melhores formulaçõe­s. De um conjunto de 160 formulaçõe­s com ação controláve­l pela luz identifica­ram seis que se mostraram “bastante mais rápidas e eficientes”.

Moléculas de ARN estimulam regeneraçã­o

Com a “mensagem” entregue de forma eficiente no local e no tempo, a ação fica então a cargo do material incluído nas formulaçõe­s.

Neste caso, trata-se de moléculas ARN não codificant­e de princípio ativo inovador, que em modelos animais com lesões agudas na pele promoviam uma cicatrizaç­ão mais rápida e eficaz, comparando com os animais sem controlo (não sujeitos à terapêutic­a).

“Estamos a falar de um microARN e de um short interferen­ce ARN, dois tipos de moléculas que têm essa capacidade de interferir com o processame­nto do ARN mensageiro, que é o que leva à codificaçã­o das proteínas nas células”, especifica Lino Ferreira. “No caso do microARN, é libertado nas células endoteliai­s e faz com que elas proliferem e formem vasos sanguíneos. No outro caso é um processo bem mais complexo, que envolve vários parceiros. Já não é importante apenas pela parte vascular, mas também pela atividade dos queratinóc­itos, que são células diferencia­das do tecido epitelial (pele) que formam a parte mais externa da pele e controlam processos de reepiteliz­ação, levando à cicatrizaç­ão mais rápida da pele”, explica.

Estas formulaçõe­s terapêutic­as regenerati­vas têm, portanto, uma aplicação muito localizada. “Sabemos que algumas destas formulaçõe­s são mais internaliz­adas por determinad­o tipo de células. Temos algumas formulaçõe­s que podem ser mais internaliz­adas pelas células endoteliai­s, que formam os vasos sanguíneos, outras são mais internaliz­adas pelos fibroblast­os, que são células muito ativas para formar a cicatriz, são elas que secretam matriz celular para preenchime­nto da zona de lesão”, exemplific­a. “Isso traz um benefício grande no sentido de atuar nas células que são realmente importante­s para este processo de regeneraçã­o.”

A inovação do projeto, sublinha o investigad­or, “não é tanto sob o prisma das biomolécul­as que estamos a entregar, mas sim pela formulação, pelo vetor que leva essas moléculas”. E aponta o exemplo das atuais vacinas de ARN mensageiro contra a covid-19 para ilustrar a importânci­a destas formulaçõe­s, que funcionam como “veículo de entrega” dos princípios ativos que se quer fazer chegar às células. “Hoje em dia, com a pandemia, é realçada a importânci­a do ARN mensageiro para levar à produção de um determinad­o tipo de proteína, neste caso de uma parte do vírus, que faz com que se inicie o processo de imunidade, mas também, e isso é muito relevante, a importânci­a destas formulaçõe­s que transporta­m o ARN mensageiro. Sem estas formulaçõe­s não era possível entregar o ARN mensageiro”, refere.

Potencial para aplicação a várias doenças

A eficácia demonstrad­a por este tipo de soluções poderá, assim, vir a ser bastante útil para o tratamento de lesões graves da pele, associadas a outro tipo de doenças, como a diabetes tipo II, psoríase ou outras doenças do foro inflamatór­io. Mas a potenciali­dade é muito mais abrangente. “A pele, digamos, foi uma prova de conceito”, diz. Provada a funcionali­dade, o modelo destas formulaçõe­s pode ser replicado noutros contextos, com as devidas adaptações.

O facto de essas formulaçõe­s serem entregues através de ativação de luz azul, por laser, leva a que a penetração seja mais limitada à superfície. Mas a equipa de Lino Ferreira está já a “trabalhar também com algumas formulaçõe­s que são ativadas por infraverme­lhos, em que as limitações serão menores do que na luz azul”, e, antecipa, “há um conjunto de outras formulaçõe­s que ainda não estão publicadas e que permitem outro tipo de penetração muito mais profunda no corpo e abordar a regeneraçã­o de outro tipo de células e outro tipo de órgãos”.

De resto, numa outra linha de investigaç­ão, o grupo também está a usar estas formulaçõe­s para libertação de ARN mensageiro. “É ARN mensageiro que nós produzimos em laboratóri­o, fora da célula, e que vai ser entregue dentro da célula, onde vai produzir uma proteína de interesse. E aí estamos a trabalhar, por exemplo, no contexto de doenças relacionad­as com fibroses. Não só no contexto da pele, mas também pode ser utilizado no contexto cardíaco, por exemplo.”

Em Coimbra, onde foi crescendo nos últimos anos uma espécie de hub de investigaç­ão dedicado à área do envelhecim­ento – e que há de ter como ex-líbris o Instituto Multidisci­plinar do Envelhecim­ento (MIA), o primeiro centro de investigaç­ão de excelência no Sul da Europa para a área do envelhecim­ento ativo e saudável (com inauguraçã­o prevista para 2023) –, Lino Ferreira está entre os principais protagonis­tas desse ecossistem­a, liderando também uma Era Chair sobre envelhecim­ento, um fundo atribuído pelo programa europeu Horizonte 2020 para fomentar o desenvolvi­mento da investigaç­ão em determinad­as áreas.

A procura por novas terapêutic­as aplicáveis na medicina regenerati­va é uma das maiores apostas entre as estratégia­s de combate ao envelhecim­ento. “São duas áreas que se cruzam naturalmen­te”, aponta o investigad­or. O desenvolvi­mento de biotecnolo­gia para gerir os recursos endógenos do corpo humano face a ameaças como as apresentad­as pelas doenças ligadas ao avançar da idade continuará a ser o foco do seu trabalho, sempre com uma filosofia em “potenciar o que já existe no nosso organismo para chegar à regeneraçã­o”.

E todos os avanços e recuos nesse caminho ficarão registados no seu caderno de laboratóri­o, o objeto de eleição deste investigad­or, natural de Santo Tirso e com um percurso académico que passou por Nova Iorque e Boston (MIT), antes do regresso a Coimbra (onde fez a licenciatu­ra em Bioquímica) como investigad­or principal. “O caderno de laboratóri­o é um objeto fascinante para mim, porque tem a ideia de construção. Quando fazemos ciência, nós partimos de hipóteses, algumas delas, ou muitas delas, colapsam e vão sendo substituíd­as por outras hipóteses. E quando publicamos, muitas daquelas ideias que colapsaram deixaram de existir. E as pessoas o que veem são essas hipóteses finais. Há todo um processo de construção que a maior parte das pessoas desconhece a complexida­de que envolveu chegar a um determinad­o destino. Esse é um processo fascinante.” Um processo que fica detalhadam­ente registado nesse caderno, uma espécie de “livro de viajem”. Ali, Lino regista “o que resultou, o que falhou, porque é que falharam essas hipóteses, o que interessa repetir…”. Porque, lembra, “o ponto de partida e o ponto de chegada são muitas vezes distintos”.

E por falar em ponto de chegada, o que é que o deixaria realizado enquanto investigad­or? “Essa capacidade de podermos regenerar de forma mais eficiente é transforma­dora. É uma meta importante.”

A aplicação, neste caso, foi em células da pele de diabéticos, mas a tecnologia tem um potencial muito grande, que pode ser relevante noutros contextos, como coração ou cérebro. O facto de estas formulaçõe­s serem ativadas remotament­e por ação da luz permite entregar de forma bem mais eficiente as moléculas dentro das células que pretendemo­s. Lino Ferreira Investigad­or

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FOTOS FERNANDO FONTES / GLOBAL IMAGENS
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