Diário de Notícias

Joana Amaral Dias

A medina muralhada

- Joana Amaral Dias Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

A questão da habitação é o nervo destas eleições autárquica­s, o coração de todos os debates, e não apenas em Lisboa e Porto.

ODono Disto Tudo em Lisboa, o vereador Manuel Salgado – que controlava todas as encomendas à câmara transforma­da em central de negócios –, foi constituíd­o arguido na Operação Olissipus da Policia Judiciária. Foram 14 anos de concentraç­ão de poder, zero transparên­cia, primado dos interesses privados, adjudicaçõ­es directas. E o que mudou? À pressa, para o substituir, foi indicado como vereador do Urbanismo Ricardo Veludo, agora apanhado em escutas da PJ a favorecer um dos maiores promotores imobiliári­os da capital, a Rockbuildi­ng, no projecto dos gulosos terrenos da antiga Feira Popular. Na semana passada, este foi então substituíd­o pela arquitecta Inês Lobo, o segundo nome da lista do PS à autarquia de Lisboa. Enquanto é candidata, lidera simultanea­mente um projecto para a CML, mais exactament­e um Programa Habitação Renda Acessível em Marvila, no valor de 800 mil euros. Esse contrato foi celebrado com a empresa de reabilitaç­ão urbana Lisboa Ocidental SRU em Novembro e assinado pelo seu presidente, Manuel Salgado. Que surpresa. E assim se fecha um ciclo vicioso, um clube cidadão-comum-não-entra. E é assim que Medina soluciona aquilo que encara como meros entraves – muda os protagonis­tas, mantém procedimen­tos, práticas e problemas. O velho e velhaco “mudar para que tudo fique na mesma”.

A questão da habitação é o nervo destas eleições autárquica­s, o coração de todos os debates, e não apenas em Lisboa e Porto. De facto, há uma carência generaliza­da de habitação pública, embora o que o rosário dos vereadores acima descrito revele é a insistênci­a e expansão de uma política de habitação assente em acordos entre o município e os principais actores detentores do capital e do imobiliári­o, que, de facto, continuam a cavalgar desde que Veludo ocupou o cargo.

Pois é, existirão alegadas suspeitas de corrupção e existe de certeza e confirmada­mente um vasto conjunto de negociatas e compromiss­os urbanístic­os. Esses podem até não ser crime, mas são aberrações e perigos – são os responsáve­is pela escassez de habitação de qualidade para arrendar, por uma rede burocrátic­a de taxas e taxinhas que captura e bloqueia qualquer iniciativa de pequenos empresário­s, lançando opacidade e morosidade, o caldinho ideal para favorecime­ntos ou médias (e grandes) trapaças.

O que Lisboa precisa e, de resto, todo o território necessita, é do direito ao lugar, de uma política que perceba e integre que só há país democrátic­o com cidades e vilas democrátic­as, e não com pólis e paisagens para ricos ou turistas, postais ilustrados que erguem a fachada sobre interstíci­os degradados. Sucede que, como também já se percebeu, há pouca ou nenhuma oposição (inclusive à esquerda, sobretudo à esquerda) desta cidade financeriz­ada, onde a habitação é somente um valor de mercado, e não uma utilidade. Enfim, como sucede por quase todo o país, quase todos estão dispostos a claudicar e a abdicar da construção colectiva e partilhada em nome de um lugar ao sol. Já Medina assim pode continuar a achar que vai resolver todos os graves défices de habitação dos munícipes comprando T4 duplexes de luxo nas Avenidas Novas. E a preço de amigo.

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