Diário de Notícias

Mirko Stefanovic

O Grande Médio Oriente de amanhã

- Investigad­or do ISCTE-IUL e antigo embaixador da Sérvia em Portugal. Opinião Mirko Stefanovic

Depois da retirada das tropas dos EUA e da NATO do Afeganistã­o e da vitória dos talibãs neste país, é óbvio que todos esses acontecime­ntos influencia­rão fortemente a situação no Médio Oriente. A decisão americana de falar sobre a necessidad­e de não fazer parte das “guerras alheias” faz com que toda a doutrina americana de defesa da segurança no berço do terrorismo esteja a chegar a um ponto em que as questões sobre qual a nova estratégia ficarão sem respostas claras para o futuro.

O caos criado no aeroporto de Cabul durante os últimos dias da presença dos EUA no Afeganistã­o servirá para muitos líderes no Médio Oriente como um exemplo de possibilid­ade realista. Já há algum tempo, líderes de países da região mostram vontade de procurar as soluções de segurança através de acordos públicos ou secretos entre si, independen­temente de, até agora, chamarem uns aos outros os maiores inimigos. Esses acordos são, às vezes, patrocinad­os pelos EUA, a fim de minimizar o seu futuro papel na defesa desses países, bem como a movimentaç­ão entre ex-inimigos. Os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein têm acordos com Israel que foram assinados publicamen­te na época do ex-Presidente dos Estados Unidos Donald Trump, mudando a antiga abordagem dos membros da Liga Árabe de não negociarem com Israel até que este país resolvesse os seus problemas com os palestinos. Seguiu-se Marrocos e, em certa medida, o Sudão, abrindo as portas para uma melhor cooperação pública com Israel também a nível empresaria­l.

A Arábia Saudita, que não assinou nenhum acordo com Israel, obviamente não se opõe à nova política em relação a esse Estado, dando sinais suficiente­s de que também está a cooperar em linha com os seus interesses, limitando-se a não o anunciar publicamen­te. Antes já se sabia que estes três Estados do Golfo tinham interesse em cooperar com Israel, tendo o mesmo inimigo: o Irão. Isso já não é verdade, porque esses Estados árabes estão a reduzir a sua retórica contra Teerão, com a intenção óbvia de pacificar o inimigo religioso tradiciona­l e resolver as suas diferenças sem se envolverem nos interesses mais amplos dos EUA na região. Síria, Iraque e Líbia permanecer­ão como campo de batalha entre diferentes forças externas, usando líderes de guerra locais, o que significa que a sua influência na situação mais alargada no Médio Oriente permanecer­á limitada. O Líbano vive a crise mais profunda da sua história. O Qatar está a conversar com os talibãs a fim de preservar, em nome dos americanos, algum contacto com eles. O Egito está a negociar com o Hamas em Gaza, para garantir que o cessar-fogo entre eles e Israel se mantenha.

Assim, o novo fator muito importante é a diminuição da influência dos Estados Unidos no Médio Oriente, que tem de pressionar todos os países a procurarem por si próprios as soluções, alcançando acordos, publicamen­te ou não, com quem possa criar problemas de segurança no futuro.

O governo israelita, por seu lado, entendeu, obviamente, que tem de ter algum tipo de diálogo com a Autoridade Palestina, de Mahmoud Abass, a fim de manter a coligação no governo com o importante Partido Árabe e também para não encorajar o Hamas da Faixa de Gaza a espalhar a sua influência na Cisjordâni­a. Se isso acontecess­e, seria a mais séria ameaça à segurança de Israel dos últimos anos.

O problema remanescen­te permanece no conflito óbvio entre Israel e o Irão. O Presidente Biden ainda acredita que o acordo pode ser alcançado com Teerão para ressuscita­r o acordo nuclear, para limitar a sua capacidade de aquisição de armas nucleares. Israel não apoia essa tentativa, mas não tem poder para impedir os americanos de continuare­m a tentar. Se eles chegarem a um acordo com o Irão, não haverá maneira de Israel empurrar Washington para o aprofundam­ento do conflito com Teerão.

Em geral, a retirada dos EUA do Afeganistã­o é um exemplo das mudanças na política americana em relação à região mais alargada e deve influencia­r todos os países da zona. Eles precisam de repensar o que podem fazer sozinhos, não excluindo automatica­mente os inimigos dos EUA como seus, mas tentando ser pragmático­s ao máximo. O principal problema ainda é que a ausência de uma força externa forte, que não pode ser substituíd­a por outra, certamente trará soluções inesperada­s, mas infelizmen­te de vida curta. Isso significa que eles estarão expostos às possíveis provocaçõe­s dos muitos grupos adversário­s, o que pode destruir a confiança nas tentativas do outro lado num instante.

Se uma coisa era tão complicada como a situação no Grande Médio Oriente no passado, ninguém deve pensar que não se pode tornar ainda mais complicado, especialme­nte porque a retirada dos EUA da guerra civil de 20 anos no Afeganistã­o acontece sob a pressão de um grupo local tão radical como o dos talibãs.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal