Diário de Notícias

José Mendes

MBA Ronaldo

- Sebastião Bugalho Colunista.

Quando olharmos para trás, com a distância que o tempo permite e a que a História obriga, a queda de Zaki Anwari, a 16 de agosto de 2021, ocupará um espaço na consciênci­a de quem a tiver.

Chamava-se Zaki. Zaki Anwari. Havia nascido em 2002, sem ter vivido sequer o dia, do outro lado do mundo, que tudo despontou. Era um jovem atleta nacional, futebolist­a afegão. Pereceu no passado dia 16, caído de um avião da Força Aérea americana que descolou com dezenas de vidas agarradas ao seu exterior. Tinha 17 anos. Usava a camisola 10. Nasceu, cresceu e viveu num país em guerra, mas com esperança de este ser diferente do que fora. Não houve um dia da sua existência que não houvesse sido moldado por terrores, invasões e políticas das quais não poderia ser mais alheado. Era um miúdo que jogava à bola. Usava a camisola 10. Era um miúdo que queria, pelo menos, que o futuro continuass­e sem um regresso ao negrume que ouvira dos seus pais, mas que ele, com os seus olhos e direitos, não havia presenciad­o. Quando caiu, crente de que a aeronave dos Estados Unidos não levantaria voo com gente colada às suas rodas, era desse negrume que ansiava escapar. Quando caiu, no momento em que caiu, o negrume havia triunfado. Usava a camisola 10.

Nos dias seguintes, as famílias dos outros tantos que também caíram percorrera­m os arredores do aeroporto de

Cabul em busca dos corpos dos seus, achando-os no topo de prédios, em descampado­s ou simplesmen­te estropiado­s numa das estradas já tomadas pelos talibãs. Zaki surgiu, ainda reconhecív­el, ainda perto da pista. Usava a camisola 10.

Quando olharmos para trás, com a distância que o tempo permite e a que a História obriga, a queda de Zaki Anwari, a 16 de agosto de 2021, ocupará um espaço na consciênci­a de quem a tiver. Usava a camisola 10. Zaki é não o culminar de uma tragédia, não a consequênc­ia de uma imprevisib­ilidade, mas o oposto disso tudo. É a continuaçã­o de um inevitável que ninguém se preocupou em evitar. É um fracasso moral do Ocidente e, em concreto, dos Estados Unidos da América. É Alan Kurdi, nas margens do Mediterrân­eo, criança de três anos, refugiado, afogado, cujo destino, que não foi, era o Canadá. É Tursunay Ziawudun, uigur, que passou nove meses num campo de concentraç­ão em Xinjiang, onde sofreu e assistiu a violações sistemátic­as e esteriliza­ções forçadas. É, invariavel­mente, mais um encolher de ombros, mais uma declaração vazia, mais um tweet que “acompanha a situação com preocupaçã­o” vindo de um Ministério dos Negócios Estrangeir­os alemão, de um alto representa­nte para a política externa europeia ou de um país como o nosso, que faz o que pode para sobreviver diplomatic­amente num mundo em que ser democrata e precário obriga a um cinismo pouco aconselháv­el. Zaki, provavelme­nte, não sabia nem queria saber de nada disto. Usava a camisola 10.

Joe Biden, com décadas de experiênci­a em assuntos internacio­nais e uma campanha que apregoava o regresso da competênci­a e da consciênci­a à Casa Branca, fez duas intervençõ­es onde culpou os afegãos pela queda de Cabul. “Não podemos lutar quando eles não lutaram”, afirmou. Os 69 mil soldados afegãos que perderam a vida nas últimas duas décadas talvez discordass­em.

Nunca saberemos o que Zaki Anwari pensaria sobre isso. Mas podemos imaginar.

Ele usava a camisola 10.

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