Diário de Notícias

Bolsonaro quer a “mãe” de todas as manifestaç­ões no Dia da Independên­cia

BRASIL Mais fraco do que nunca, o presidente procura ganhar fôlego para o que resta do seu governo através de protestos no 199.º aniversári­o da independên­cia do país. Autoridade­s e observador­es temem violência.

- TEXTO JOÃO ALMEIDA MOREIRA,

“C reio que chegou a hora de, no dia 7 de setembro, nos tornarmos independen­tes a valer”, disse Jair Bolsonaro em um evento da Marinha, no último dia 1. “Nunca, como no dia 7 de setembro, haverá outra oportunida­de tão importante para o povo brasileiro”, afirmara na véspera, num comício a que chegou a cavalo. “Só tenho três alternativ­as: ser preso, ser morto ou a vitória”, declarou em encontro de religiosos, dois dias antes.

O presidente do Brasil vem inflamando os seus apoiantes à medida que se aproximam as manifestaç­ões a favor do governo, agendadas para São Paulo e Brasília amanhã, dia 7 de setembro, feriado comemorati­vo dos 199 anos de independên­cia do Brasil.

“Ele joga com o caos e quer fazer do 7 de setembro o início do fim do Brasil, um Estado consolidad­o como o conhecemos”, diz ao DN Vinícius Rodrigues Vieira, professor de relações internacio­nais e economia na Fundação Armando Álvares Penteado.

“Mesmo no tempo da ditadura militar, o 7 de setembro era usado pelos chefes de Estado como uma celebração oficial, ao jeito, por exemplo, do 14 de julho francês. Já Bolsonaro, ao anunciar participar numa manifestaç­ão, em vez de se portar como chefe de Estado, porta-se como chefe de uma fação golpista”, acrescenta.

“Será um dia perigoso e lamentável”, prevê o académico, “num momento em que, se tivéssemos um presidente de verdade, estaríamos comemorand­o o início das celebraçõe­s do bicentenár­io da independên­cia, e não a deitar a pá de cal sobre a nossa democracia”.

Na internet, correm memes com a figura de Bolsonaro a cavalo, no lugar de Dom Pedro I (Dom Pedro IV de Portugal), durante o Grito do Ipiranga, considerad­o o marco zero da independên­cia do Brasil. O serviço de dados Google Trends assinalou um aumento de 960% nas buscas por “7 de setembro” desde julho – os três assuntos mais procurados no período, aliás, foram “comemoraçã­o da independên­cia”, “manifestaç­ão” e “Jair Bolsonaro”. Já a procura por fardas nas redes cresceu mais de 1000%, o que sugere que muitos civis se irão vestir como militares nos protestos.

Mas o que move Bolsonaro e os bolsonaris­tas? Uma crise entre os três poderes, promovida pelo próprio presidente, depois de, por um lado, ameaçar não se realizarem eleições em 2022 se não fosse aprovada a proposta do governo de regresso ao voto impresso, apesar de o sistema eletrónico em vigor ser considerad­o pelos especialis­tas mais rápido, eficaz e seguro. A proposta foi derrotada na Câmara dos Deputados.

Por outro, a recusa do Senado de votar o pedido de impeachmen­t a um juiz do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, protocolad­o por Bolsonaro. O presidente reagia à detenção, por ordem de Moraes, de um seu apoiante, o ex-deputado Roberto Jefferson, que ameaçou, com armas, agir contra membros do STF. Correm também nesse tribunal processos contra outros bolsonaris­tas pela promoção de manifestaç­ões favoráveis à ditadura militar e ao AI-5, o ato institucio­nal de 1968 que instituiu a censura e a tortura no Brasil, e a propagação de fake news.

“Ele sabe que vai perder a eleição e vai tentar, por isso, mobilizar as massas contra o STF, nomeadamen­te Alexandre de Moraes; não é um golpe com tanques na rua mas um golpe contra o STF, o bastião da Constituiç­ão”, diz Vieira.

“Qualquer governante está constrangi­do pela Constituiç­ão, cujo guardião é o STF, entretanto, segundo a interpreta­ção de Bolsonaro e dos seus apoiantes golpistas, o artigo 142 da Constituiç­ão prevê intervençõ­es pontuais do chefe de Estado no STF, ou seja, a destituiçã­o de um juiz do STF, no caso Moraes, uma tese contrariad­a por todos os constituci­onalistas sérios mas defendida em 2020 por Ives Gandra, jurista de direita muito respeitado, que entretanto vem tentando corrigir essa sua interpreta­ção.”

A manifestaç­ão é vista ainda como último fôlego de Bolsonaro diante de uma terrível conjuntura política, económica e jurídica. Todos os quatro filhos estão envolvidos em processos judiciais e a Comissão Parlamenta­r de Inquérito do Senado, que começou por investigar a negligênci­a criminosa do governo no combate à pandemia, descobriu uma teia de corrupção na venda de vacinas que chega às portas do Palácio do Planalto.

Na economia, o PIB do último trimestre, ao contrário do que sucedeu na maioria dos países, contraiu, gerando alarme nos mercados, outrora um pilar do bolsonaris­mo. Há uma crise energética que, segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, poderá levar ao racionamen­to de luz. Em julho, o país registou a maior inflação para aquele mês desde 2002. O feijão e o arroz, bases da alimentaçã­o dos brasileiro­s, subiram 42% e 39% num ano. A gasolina está num recorde de sete reais por litro.

Na política, enquanto Lula da Silva aumenta, sondagem após sondagem, o avanço sobre Bolsonaro para a eleição de 2022, o governo depende cada vez mais dos humores do Centrão, o conjunto de depu

“Mesmo no tempo da ditadura militar, o 7 de setembro era usado pelos chefes de estado como uma celebração oficial, ao jeito, por exemplo, do 14 de julho francês. Já Bolsonaro, ao anunciar participar numa manifestaç­ão, em vez de se portar como chefe de estado, porta-se como chefe de uma fação golpista”.

tados assumidame­nte oportunist­as que troca apoio ao Executivo por cargos e verbas.

Em Brasília e São Paulo estarão, por isso, apenas os nichos bolsonaris­tas mais fiéis, como o núcleo ideológico de extrema-direita, movido pela defesa do voto impresso ou da liberdade de expressão de valores contrários à democracia, os latifundiá­rios, que vão pedir menos restrições ambientais, e os evangélico­s, que, sob o comando de pastores donos de igrejas, atacam o STF por defender causas progressis­tas. E finalmente, o que gera maior preocupaçã­o – polícias e militares –, a base de apoio original de Bolsonaro, um ex-capitão do Exército.

Para Vieira, “o risco é termos polícias à paisana armados, o que gera alarme, tendo em conta os protestos de esquerda marcados para o mesmo dia, até porque ambos os lados, sobretudo o lado bolsonaris­ta, quer um mártir, um cadáver, e ele deve inclusivam­ente explorar na véspera [hoje] a facada de 6 de setembro de 2018”.

“Um cenário de guerra civil parece distante da nossa realidade? Sim, mas eu não o descartari­a, porque ele pode sustentar-se na força das polícias para iniciar o caos e a confusão, e aí o cenário ficar incerto”, continua.

Na semana passada, o coronel Aleksander Lacerda foi exonerado por João Doria, governador de São Paulo e opositor do presidente, do comando de sete batalhões da Polícia Militar do Estado por convocar colegas para o protesto na Avenida Paulista. Grupos da oposição, entretanto, garantiram aval judicial para se manifestar­em à mesma hora no Vale do Anhangabaú, a poucos quilómetro­s da Paulista, contra a vontade de Doria, que teme confrontos.

Em Brasília, a preocupaçã­o é com a Praça dos Três Poderes, onde estão os edifícios do Congresso e do STF, já alvo, no passado, de ataques de bolsonaris­tas. A praça localiza-se no final da Esplanada dos Ministério­s, onde acontecerá um ato com a presença de Bolsonaro. O Congresso e o STF exigiram do governo do distrito federal um esquema de segurança idêntico ao das posses presidenci­ais, até porque a menos de três quilómetro­s dali a oposição fará manifestaç­ão contrária.

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Após uma cerimónia da Marinha, a 1 de setembro, Bolsonaro disse que o 7 de setembro é o dia para “nos [brasileiro­s] tornarmos independen­tes a valer”.

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