Diário de Notícias

O tempo dos atlantista­s

- Henrique Burnay

Com a decisão sobre o Afeganistã­o, Joe Biden já fez mais pela autonomia estratégic­a da União Europeia – seja lá o que isso for – do que Trump em cinco anos.

Por estes dias, em Bruxelas e nas capitais europeias, o grande tema é a autonomia estratégic­a. Por enquanto ainda é um conceito indetermin­ado e eventualme­nte contraditó­rio, mas o que está em causa é claro. As prioridade­s de segurança e defesa dos europeus não são necessaria­mente as mesmas dos seus aliados, a Europa vai ter de assumir maior responsabi­lidade pela sua segurança, e isso implica alguma forma de capacidade militar. Resta saber o mais importante, se está em curso um processo de reforço da componente europeia da NATO, de afastament­o em relação aos Estados Unidos da América ou uma terceira via. Há muito que a aliança atlântica não estava tão em causa.

O ministro da Defesa da Eslovénia, país que sucedeu a Portugal na presidênci­a rotativa da União Europeia, diz que, “mais do que nunca, é evidente que a Europa tem de fazer mais pela sua defesa, aumentar as suas capacidade­s e ser capaz de fornecer segurança autonomame­nte”. A Eslovénia do primeiro-ministro Janez Janša, que admira Trump na vida real e o imita no Twitter.

Thierry Breton, o comissário europeu francês que tutela o mercado interno e a indústria, a defesa e o digital (uma mistura nada acidental), disse ao Financial Times que a União Europeia – que sempre se viu sobretudo como uma potência normativa – precisa de aumentar as suas capacidade­s de defesa e desenvolve­r os atributos do hard power. Aquilo de que a Europa se orgulhava de não precisar.

Joseph Borrel, a voz da política externa europeia (valha o que isso valer), diz o mesmo. E acrescenta: “Precisamos de ser capazes de agir autonomame­nte quando e onde seja necessário” e de uma força europeia de intervençã­o rápida de cerca de cinco mil militares. Há quem fale em 50 mil. E o presidente Emanuel Macron, o próximo a presidir à UE e o primeiro a fazê-lo já depois das eleições alemãs e da saída de cena de Merkel, há muito que defende um exército europeu.

Claro que nada disto é unânime ou sequer consensual. Na Alemanha, a ideia de afastament­o em relação à NATO é sempre mal recebida. A ministra da Defesa, que esteve para ser candidata a chanceler, considera que o pior do que aconteceu ao Ocidente no Afeganistã­o seria resultar daí um afastament­o entre europeus e americanos. Os bálticos também não são entusiasta­s da ideia de divórcio ou separação. E na NATO e na União Europeia não passa despercebi­do o empenho francês em dividir os aliados e reinar entre os europeus.

O que aconteceu no Afeganistã­o provou a necessidad­e de a Europa tomar mais conta de si em termos de segurança e defesa. O que não significa que os europeus estejam disponívei­s, em homens e em meios, para o fazer. Esse é um problema. O outro é saber se isso se faz assumindo mais responsabi­lidades próprias no contexto da aliança entre os dois lados do Atlântico, incluindo os britânicos, ou aumentando uma capacidade própria e à parte. Se assim fosse, estava lançado o fundamento de um dos aspetos essenciais da soberania que a UE ainda não tinha requisitad­o aos Estados.

Há um meio termo. Normalment­e é o caminho tipicament­e europeu. E normalment­e resulta na conclusão, posterior, de que é necessário integrar mais.

Para quem acredita na permanênci­a da razão de ser da aliança entre os dois lados do Atlântico, é altura de intervir. Por muito que a Europa seja importante, o Ocidente é mais.

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