O tempo dos atlantistas
Com a decisão sobre o Afeganistão, Joe Biden já fez mais pela autonomia estratégica da União Europeia – seja lá o que isso for – do que Trump em cinco anos.
Por estes dias, em Bruxelas e nas capitais europeias, o grande tema é a autonomia estratégica. Por enquanto ainda é um conceito indeterminado e eventualmente contraditório, mas o que está em causa é claro. As prioridades de segurança e defesa dos europeus não são necessariamente as mesmas dos seus aliados, a Europa vai ter de assumir maior responsabilidade pela sua segurança, e isso implica alguma forma de capacidade militar. Resta saber o mais importante, se está em curso um processo de reforço da componente europeia da NATO, de afastamento em relação aos Estados Unidos da América ou uma terceira via. Há muito que a aliança atlântica não estava tão em causa.
O ministro da Defesa da Eslovénia, país que sucedeu a Portugal na presidência rotativa da União Europeia, diz que, “mais do que nunca, é evidente que a Europa tem de fazer mais pela sua defesa, aumentar as suas capacidades e ser capaz de fornecer segurança autonomamente”. A Eslovénia do primeiro-ministro Janez Janša, que admira Trump na vida real e o imita no Twitter.
Thierry Breton, o comissário europeu francês que tutela o mercado interno e a indústria, a defesa e o digital (uma mistura nada acidental), disse ao Financial Times que a União Europeia – que sempre se viu sobretudo como uma potência normativa – precisa de aumentar as suas capacidades de defesa e desenvolver os atributos do hard power. Aquilo de que a Europa se orgulhava de não precisar.
Joseph Borrel, a voz da política externa europeia (valha o que isso valer), diz o mesmo. E acrescenta: “Precisamos de ser capazes de agir autonomamente quando e onde seja necessário” e de uma força europeia de intervenção rápida de cerca de cinco mil militares. Há quem fale em 50 mil. E o presidente Emanuel Macron, o próximo a presidir à UE e o primeiro a fazê-lo já depois das eleições alemãs e da saída de cena de Merkel, há muito que defende um exército europeu.
Claro que nada disto é unânime ou sequer consensual. Na Alemanha, a ideia de afastamento em relação à NATO é sempre mal recebida. A ministra da Defesa, que esteve para ser candidata a chanceler, considera que o pior do que aconteceu ao Ocidente no Afeganistão seria resultar daí um afastamento entre europeus e americanos. Os bálticos também não são entusiastas da ideia de divórcio ou separação. E na NATO e na União Europeia não passa despercebido o empenho francês em dividir os aliados e reinar entre os europeus.
O que aconteceu no Afeganistão provou a necessidade de a Europa tomar mais conta de si em termos de segurança e defesa. O que não significa que os europeus estejam disponíveis, em homens e em meios, para o fazer. Esse é um problema. O outro é saber se isso se faz assumindo mais responsabilidades próprias no contexto da aliança entre os dois lados do Atlântico, incluindo os britânicos, ou aumentando uma capacidade própria e à parte. Se assim fosse, estava lançado o fundamento de um dos aspetos essenciais da soberania que a UE ainda não tinha requisitado aos Estados.
Há um meio termo. Normalmente é o caminho tipicamente europeu. E normalmente resulta na conclusão, posterior, de que é necessário integrar mais.
Para quem acredita na permanência da razão de ser da aliança entre os dois lados do Atlântico, é altura de intervir. Por muito que a Europa seja importante, o Ocidente é mais.