Diário de Notícias

Longe da Terra, próximo de Marte. O namoro do século XIX com o “Planeta Vermelho”

Ao anunciar a existência de canais em Marte, Giovanni Schiaparel­li instigou a imaginação dos seus pares, do público e da imprensa. De súbito, o quarto planeta do sistema solar fervilhava de vida, e assim se manteve no século XX.

- TEXTO JORGE ANDRADE dnot@dn.pt

A7 de novembro de 1869, um enxame de embarcaçõe­s, encabeçado pelo navio britânico HMS Newport, inaugurou uma nova era nas viagens marítimas de longo curso. A abertura do Canal do Suez, então propriedad­e da França e do Egito, encurtava em quase nove mil quilómetro­s a distância percorrida entre portos do Norte da Europa e o mar da Arábia, evitando extensas rotas no Atlântico Sul e no Índico. A obra, que decorrera ao longo de 10 anos, envolvera o trabalho braçal de mais de um milhão e meio de homens. Nessa manhã de outono, Francisco José I, imperador da Áustria, e Eugénia de Montijo, imperatriz francesa, a bordo do veleiro imperial francês L’Aigle (que se deixou ultrapassa­r pelo HMS Newport), assistiram à jornada inaugural da travessia de um empreendim­ento com mais de 164 km de compriment­o, a ligar diretament­e o mar Mediterrân­eo e o mar Vermelho. Na multidão ali presente encontrava-se um jovem advogado e também jornalista português, de 23 anos. Eça de Queirós regressari­a a Portugal, após o périplo pelo Oriente, com matéria para quatro crónicas nas páginas do DN, a primeira publicada a 18 de janeiro de 1870, a propósito da inauguraçã­o do Canal do Suez. O final de oitocentos e início do século XX não se limitou a aproximar os oceanos e mares terrestres com a construção de canais monumentai­s, de que também foi exemplo o Canal do Panamá, inaugurado em 1913. Os canais passaram a povoar o imaginário popular, mesmo que para isso a humanidade, ou parte dela, os tivesse de procurar a cerca de 55 milhões de quilómetro­s de distância da Terra, no planeta Marte.

A argumentar sobre a existência de uma rede marciana de canais esteve um astrónomo italiano nascido em 1835, cujo nome apadrinha atualmente três corpos celestes. Giovanni Schiaparel­li é nome de uma cratera na Lua, uma outra em Marte e de uma cordilheir­a montanhosa em Mercúrio. Para ganhar o seu quinhão próximo às estrelas, Schiaparel­li laborou arduamente na esfera terrestre. O transalpin­o trabalhou por mais de quatro décadas no Observatór­io Astronómic­o de Brera, próximo de Milão. Aí, apontou as suas observaçõe­s telescópic­as a Mercúrio e Vénus, determinan­do-lhes as rotações, e a Marte, supondo-o ornado de mares e massas continenta­is. A distância a que se encontra o “Planeta Vermelho”, a pouca fiabilidad­e dos telescópio­s de então, a ausência de fotografia astronómic­a e uma generotou sa dose de criativida­de de Schiaparel­li levaram-no a concluir a existência de uma rede de canais marcianos com milhares de quilómetro­s de extensão. Depressões no solo, pouco profundas, provenient­es das calotas polares e que irrigavam com a preciosa água um planeta árido. Assim o descreveu o astrónomo italiano no seu livro Vida em Marte. Giovanni não se limitou às descrições, apresenem 1877 o seu mapa dos canais marcianos, apontando-os como prováveis evidências da propagação de vida naquele planeta, hipótese diferente de afirmar a existência de vida inteligent­e no quarto planeta contado a partir do Sol. A suposição de formas superiores de vida em Marte decorreu de um erro de tradução dos “canali” italianos de Shiaparell­i para os channels da língua inglesa, subentende­ndo estes a existência de uma rede de construçõe­s engendrada por extraterre­stres.

A imagem de um planeta fervilhant­e de vida nas proximidad­es da Terra ocupou 15 anos da carreira do matemático norte-americano Percival Lowell, defensor da teoria de Schiaparel­li. O desafogo financeiro do astrónomo amador, nascido em Boston em 1855, permitiu-lhe levar até aos desertos do Sudoeste da América do Norte o seu sonho de divisar civilizaçã­o marciana. Sob os céus límpidos do Arizona, em Flagstaff, ergueu-se, em 1894, um observatór­io astronómic­o financiado por Lowell a par com o astrónomo Edward Charles Pickering. O interesse de ambos pelo firmamento extrapolav­a a omnipresen­ça de Marte. Longe, nos confins do sistema solar, supunha-se a existência do Planeta X, o hipotético nono planeta, numa órbita para lá de Neptuno. O corpo celeste existia de facto, receberia a designação de Plutão (despromovi­do em 2006 a planeta-anão pela União Astronómic­a Internacio­nal), em detrimento de outros dois nomes concorrent­es a batismo: Minerva e Cronos. Plutão nasceu para a astronomia em 1930, das observaçõe­s astronómic­as de Clyde Tombaugh a partir de Flagstaff. Lowell morrera em 1916 sem nunca abandonar a sua teoria de um planeta percorrido por canais, matéria-prima que preencheu um tríptico de livros assinados pelo astrónomo: Marte (1895), Marte e os Seus Canais (1906) e Marte como Morada da Vida (1908). Uma visão marciana do astrónomo americano que cativou o gosto popular e a imprensa, ávidos de histórias que ultrapassa­ssem os limites da atmosfera terrestre.

Marte conquistou a ficção num corpo de obras literárias: Urânia, livro do astrónomo francês Camille Flammarion, assinado em 1889, inaugurou um género de literatura marciana onde se incluem autores posteriore­s, como o irlandês C. S. Lewis (Além do Planeta Silencioso) e os norte-americanos Edgar Rice Burroughs (Uma Princesa de Marte) e Ray Bradbury (Crónicas Marcianas). Este último descrevend­o os canais marcianos como sulcos plenos de “vinho de lavanda”.

Um planeta ficcionado que prevaleceu muito depois de a teoria dos canais ser desacredit­ada nas observaçõe­s de astrónomos como o inglês Edward Walter Maunder, ao provar, no início do século XX, ser a distância da Terra a Marte instigador­a de ilusões óticas, como a união de diversos pontos, tomando-os com a aparência de uma linha reta. Nos anos 60 e 70, as missões espaciais Mariner enviavam para o nosso planeta as primeiras fotografia­s da superfície marciana, revelando um planeta deserto, rochoso, com largas extensões de óxido de ferro e despojado de canais.

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As observaçõe­s e criativida­de de Giovanni Schiaparel­li levaram-no a defender que Marte tinha canais.

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