Diário de Notícias

A Diretora: Sandra Oh na cadeira que merece

SÉRIE Entrou discretame­nte no catálogo da Netflix e é do melhor que por lá se encontra, neste momento, em matéria de séries. A Diretora põe os olhos nos bastidores académicos através da primeira mulher a liderar um departamen­to de Inglês.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO dnot@dn.pt

A “cabra que manda em vocês todos”, lê-se na placa de secretária que Ji-Yoon Kim (Sandra Oh) desembrulh­a orgulhosam­ente nos primeiros minutos de The Chair, antes mesmo de se sentar na velha poltrona giratória do respeitoso gabinete que agora ocupa e... estatelar-se no chão.

Nada como uma boa gargalhada para dar início a uma série.

A protagonis­ta é alguém que acaba de assumir o cargo de diretora do departamen­to de Inglês da Pembroke University – a primeira mulher nomeada para o cargo naquela instituiçã­o fictícia. O que ela ainda não sabe é que esta posição de “poder”, o auge da sua carreira, está longe de ser pera doce. Não demora muito até que venha de lá o desabafo: “Sinto como se me tivessem entregue uma bomba-relógio, porque queriam ter a certeza de que seria uma mulher a segurá-la quando explodisse.”

Os problemas começam quando o reitor (David Morse) incentiva Ji-Yoon a empurrar o corpo docente sénior para a aposentado­ria. Um papel ingrato que ela não aceita, apesar de perceber que há uma evidente questão geracional a definir o micropanor­ama universitá­rio e a refletir-se numa crise de matrículas: enquanto as aulas de uma jovem professora negra (Nana Mensah) são um êxito notório, as salas onde lecionam um outro professor de Literatura Americana (Bob Balaban), especialis­ta em Melville, e uma medievalis­ta estudiosa de Chaucer (Holland Taylor, hilariante!), têm meia dúzia de gatos-pingados, se tanto. E eles não pensam em adaptar-se a novos métodos, muito menos com o intento “mercantil” de cativar alunos.

Mas o caso que vai absorver mais a energia de Ji-Yoon é ainda outro: Bill ( Jay Duplass), um professor conhecido como a autêntica rock star do departamen­to, um provocador sem malícia, acaba envolvido num escândalo quando decide fazer a saudação nazi numa aula sobre o poder do absurdo contra o fascismo... O meme torna-se viral e os alunos transforma­m-se numa turba ruidosa a exigir a sua demissão.

Portanto, conflito geracional, cultura do cancelamen­to, sexismo, elitismo branco: A Diretora parece um manual pejado de temas em voga. Mas desengane-se

quem acha que as criadoras da série estão interessad­as em dar lições ao espectador ou sequer embelezar um grupo e demonizar outro. A atriz Amanda Peet, a assinar o seu primeiro argumento, e Annie Julia Wyman, académica de Harvard e argumentis­ta, tecem uma peça de humor com plena consciênci­a das complexida­des do meio retratado. Em seis episódios de meia-hora, esta série Netflix, produzida pelos criadores de A Guerra dos Tronos, David Benioff e D.B. Weiss (primeiro momento de um acordo com a plataforma de streaming), conquista pela leveza, sensibilid­ade e alfinetada­s na massa cinzenta.

Numa entrevista ao The New York Times, Peet salientou, no entanto, que, antes de trabalhar qualquer assunto espinhoso, a sua ideia era escrever algo na linha de um Tootsie ou Broadcast News: “Não me propus tomar posição sobre nada. Queria realmente fazer uma peça de intimidade e uma

comédia romântica no local de trabalho, à semelhança das que eu adoro.” Esse é o outro lado de A Diretora. O lado que mostra a amizade terna e condimenta­da de Bill e Ji-Yoon, inevitavel­mente a cruzar a vida académica com as matérias do coração. Enquanto ele ainda está a fazer o luto da esposa, ela lida com o comportame­nto peculiar da filha adotiva (Everly Carganilla), uma menina de origem mexicana que não se inibe de falar da morte e de pénis seja com quem for – não por acaso, Bill é o único que consegue estabelece­r com a criança pespineta uma relação paternal, ou, pelo menos, educativa.

E aqui o papel de Sandra Oh fecha um ciclo. Ela é a diretora angustiada que se desdobra na vontade de trazer inclusão ao seu departamen­to, na sensibiliz­ação dos colegas vetustos para as necessidad­es do ensino nos novos tempos e na resolução do trágico mal-entendido de Bill, tudo isto enquanto ensaia a maternidad­e. Nesse campo, as suas derrotas quotidiana­s são tão bonitas de se ver quanto a pequena vitória que surge algures. A razão é simples: Oh, numa pura expressão ásio-americana (sendo ela canadiana, filha de pais coreanos), é gente de carne e osso, uma mulher extenuada e com empatia natural. Tê-la como protagonis­ta é o melhor que poderia acontecer a The Chair.

Ao ser tão específica na sua relação com cada uma das personagen­s, a atriz de Killing Eve traz a esta nova série justamente a maturidade da sua experiênci­a de secundária. Quer dizer, a forma como ela tenta gerir os ânimos das pessoas à sua volta é algo espontâneo em alguém habituado a interpreta­ções complement­ares, alguém que se adapta ao outro, ao mesmo tempo que potencia tomadas de atitude. Chegou a sua vez de ser a adulta na sala.

De resto, ao contrário desta diretora que quer resolver os problemas do seu departamen­to, as criadoras de The Chair não apresentam soluções práticas para as dinâmicas de um meio hierárquic­o a rebentar pelas costuras. E é também por essa escrita inteligent­e, por essa recusa pedagógica, que ficamos a desejar a próxima temporada.

Conflito geracional, cultura do cancelamen­to, sexismo, elitismo branco: A Diretora parece um manual pejado de temas em voga. Mas desengane-se...

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Sandra Oh tem em A Diretora a oportunida­de de ser “a adulta na sala”.

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